terça-feira, 15 de janeiro de 2013
O Faial e os Portugueses, de Thomas Wentworth Higginson
(2009) Thomas Wentworth Higginson, O Faial e os Portugueses.
por Catarina Azevedo in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, n.º 19 pp. 515-520
A colectânea de textos de Thomas Wentworth Higginson, O Faial e os portugueses, coligida por George
Monteiro, compreende sete textos que abordam temáticas relacionadas com o que observou aquando da sua vinda aos Açores e que se traduz num cariz mais descritivo, próprio do texto jornalístico, ou na construção de um imaginário mais misterioso quando se aventura na ficção.
Embora, como bem frisa a nota do editor, nem sempre a visão que tem dos faialenses e dos seus hábitos seja a mais agradável para quem, hoje, visita a ilha (e era inevitável que assim fosse pois retrata o século XIX e dado que estes textos “constituem a reacção de um visitante sincero, informado e frequentemente generoso perante um povo e uma cultura que lhe são claramente estranhos em virtude da sua própria preparação e herança cultural” p. 21), os seus textos permitem traçar um retrato bastante rigoroso do que era a sociedade da época e quais as vivências tanto dos habitantes como de quem nos visitava. Além disso, por detrás das críticas, sente-se, quase sempre, um entusiasmo verdadeiro pela cultura e pela paisagem que o levou a debruçar-se sobre tudo o que lhe parecia tão diferente da sua própria experiência pessoal.
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O Faial e os Portugueses, de Thomas W. Higginson
Uma visão romântica das ilhas do canal no séc. XIX
por Duarte Miguel Barcelos Mendonça in Portuguese Times
No ano passado o Núcleo Cultural da Horta publicou esta magnífica obra, que reúne uma série de textos da autoria do americano Thomas Wentworth Higginson, pastor protestante unitário, entre muitos outros predicados, natural de Cambridge, Massachusetts, que passou uma temporada na ilha do Faial no séc.
XIX, junto dos Dabney, e que nos legou as suas impressões da ilha que então
lhe foi dado a conhecer.
A recolha, (em várias fontes), a organização e introdução destes textos foi elaborada por George Monteiro, Professor Emérito da Brown University, e uma referência no campo dos estudos luso-americanos. A tradução dos originais, para a língua portuguesa, foi um trabalho da responsabilidade de Lisa Godinho e de Leonor Simas-Almeida.
Nas 138 páginas que compõem este livro, cuja capa se apresenta ilustrada com uma gravura do Faial retirada do livro de Mark Twain, Innocents Abroad, temos o privilégio de ler os seguintes textos escritos pelo Higginson: “O Faial e os Portugueses”, “Uma série de temporais terríveis”, “Subida à montanha do Pico”, “Janela assombrada”, Uma viagem aos Açores”, “As ilhas encantadas” e “Apogeu e decadência de Portugal”.
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Memória da Terra, de José Martins Garcia
JOSÉ MARTINS GARCIA
MEMÓRIA DA
TERRA
Col. O Chão
da Palavra
Lisboa,
Veja/1990
por J. M. Bettencourt da Câmara in Colóquio Letras
Até que ponto pode manter-se a
ideia – a que nos habituámos – de que o escritor vive das suas obsessões (vive delas, como criador, porque, homem, vive com elas)? Há, de qualquer modo,
autores de temática mais diversificada, abertos a um mais amplo leque de
questões do que outros. Dir-se-á, porém, que mesmo nestes é possível explicitar
preocupações fundamentais que teimam em permanecer de título para título – as ditas
obsessões que, não menos do que os contornos que sob a sua mão assume a língua,
isto é, o estilo, contribuem para o caracterizar, para face ao leitor, lhe
garantir individualidade, factor maior, porventura, da sua capacidade de
fascínio. A necessidade do reconhecimento – que na história das artes visuais
explica, em boa parte, o multissecular triunfo da mimesis – verifica-se aqui também: o encontro com o escritor na
presente obra ganha interesse simultaneamente pela novidade que apresenta em
relação a trabalhos precedentes e pela permanência do perfil que o discurso
escrito nos faz reconhecer.
Esta perspectiva serviria à
abordagem global de uma obra vasta como é já a de José Martins Garcia. Fiel às
suas obsessões, senhor de um perfil, não se dira, porém, que o escritor
açoriano de facto se repita. O último romance parece demonstrá-lo.
Interessante, pois, na nova obra de Martins Garcia reconhecer o Autor,
reencontrá-lo.
Por exemplo, na desconfiança, que
ele traz de longe, face à etnografia (p. 173: “uns ‘intelectuais’ que deliram
com a criatividade popular”), etnografia que, aliada a determinados entendimentos
das literaturas regionais – da açoriana, que particularmente o implica –, ele
teme sempre oculte o que deveras interessa à leitura: o humano.
No não recear as ideias ou, mesmo,
sem pejo nem pretensão simultaneamente, a filosofia – naturalmente na medida em
que esta possa, sem a prejudicar, ser presente à ficção. (Por exemplo, a
questão do sentido da história ressalta em Contrabando
Original, romance que antecedeu Memória
da Terra. Deste, extraio as frases finais: “Às oito vou entregar estes
cadernos ao António Lima. Ou não?… Um rasto, para quê?... Como não ter
existido… Como não ter existido…”).
No gosto pelos labirintos da
heteronímia – sempre, afinal, como a questão do eu e do outro, num insuportável
jogo de espelhos, onde coisas e imagens delas se confundem. Importante na
última parte de Contrabando Original,
em Memória da Terra Martins Garcia
realiza o tema diferentemente: aqui o narrador reproduz, repete, o percurso
insular do irmão admirado/recusado. (“- Dói-me. É
verdade que entrei aqui com o teu irmão… Mas eu não esperava entrar aqui de
novo contigo, para repetir a mesma cena. É um pesadelo… /- Não é uma repetição”, p. 235.)
Sobretudo, na experiência do outro
como completamente outro, do outro a que o eu se refere não por alguma
identidade, mas por oposição, por negação, por agressão: quer dizer, a questão
da negatividade nas relações humanas, a qual constitui, sem margem para dúvida,
umas das obsessões maiores de Martins Garcia, parece referir, a esse, o perfil
de escritor “maldito”).
Finalmente, no tema da
insularidade, em que me deterei um pouco mais, para além da simples enumeração
que em relação aos anteriores me impus.
Li Contrabando Original como tentame de realização literária do
próprio destino açoriano: da reclusão insular, corajosamente desenhada em
traços de semibarbárie tribal, à diáspora continental (lisboeta) e americana,
pareceu-me ser esse, nitidamente, o propósito subjacente à obra. Escrito na
primeira pessoa, o romance é, efetivamente, menos autobiográfico do que paradigmático.
A experiência pessoal do Autor, imprescindível de um modo ou de outro (por mais
que ele se queira “fingidor”), solicitará apenas uma leitura imediata e
simplificadora (simplista) do livro, que só entendido como paradigma de um
destino açoriano adquire toda a sua dimensão.
Persistindo na escrita na primeira
pessoa, em Memória da Terra o
narrador é, contudo, não-ilhéu. (Estava tentado a dizer: não-açoriano; porém, o
esbatimento do cenário geográfico acentua-se aqui relativamente a Contrabando Original, onde ainda é
possível reconhecer a ilha natal do Autor, o Pico. Em Memória da Terra fala-se da
ilha, embora possa manter-se que se trata dos
Açores, sem que de nenhuma ilha dos Açores se trate.) É, assim, óbvio o
projeto que por seu turno subjaz a Memória
da Terra: pretende-se abordar a questão da ilha a partir de um ponto de
vista pretensamente exterior a ela – outro que não o daqueles que da
maternidade do seu solo se reclamam (ou recusem). É um “continental” que,
chegado à ilha em busca do irmão desaparecido (a referência ao modelo do
romance policial é, mais do que possível, apetecida), a conta – e se conta.
Donde o facto de o romance representar, para o Autor – o qual, nascido nos
Açores, depois de uma experiência de diáspora pela capital, por uma das
colónias portuguesas de África (onde fez a experiência da guerra) e pelos
Estados Unidas da América (onde foi professor, numa universidade), ao
Arquipélago retornou (ensina atualmente na Universidade dos Açores) – a
tentativa para caraterizar o olhar do não-ilhéu sobre a ilha.
Olhar que podia ser o de fascínio
pela generosidade da natureza (o que não redunda necessariamente na caricatura
do olhar turístico), mas esse não se quadra ao perfil do escritor: é a ilha
como espaço fechado, sufocante, que lhe interessa. (como já o fora, sobretudo,
em Varanda de Pilatos de Vitorino
Nemésio. Julgo significativo que Martins Garcia, estudioso notável da obra
nemesiana, se empenhe na “recuperação” do primeiro romance do autor do Mau Tempo no Canal, contra palavras
desde que de facto não devemos tomar ao pé da letra.) Repetem-se ao longo de Memória da Terra as considerações sobre
a ilha, fracção de terra fatidicamente cercada pelo “roncar do mar, a ameaça do
mar” (p.95), e a condição insular, que o narrador, continental, não consegue
fazer sua, nem na realidade física (cita-se o clima que impõe “a viver” –
p.146) nem na dimensão humana (“Mais saudável, sem dúvida, seria agredir esse
mundo mediante a excomunhão duma fracção chamada ‘ilha’, rocha fatídica,
cativeiro, claustro, paradoxalmente cheia de mexericos, boatos, piadas de mau
gosto, recalcamentos, bolor” - p. 91).
Negativamente (em mais do que um
sentido!), José Martins Garcia continua a celebrar a(s) ilha(s).
..........................................
Urbano Bettencourt sobre José Martins Garcia
in BOLETIM DO NÚCLEO CULTURAL DA HORTA Nº 13, 2004
(...)
José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.
Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).
De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.
Urbano Bettencourt sobre José Martins Garcia
in BOLETIM DO NÚCLEO CULTURAL DA HORTA Nº 13, 2004
(...)
José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.
Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).
De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.
(...)
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013
Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar
Raiz Comovida – Trilogia Romanesca, de Cristóvão de Aguiar, começou a ser publicada há 25 anos – iniciou-se com A Semente e a Seiva (1978), e continuou-se com Vindima de Fogo (1979) e O Fruto e o Sonho (1981), para aparecer finalmente, num único volume (pela Editorial Caminho, 1987). Temos agora uma nova edição desta obra (Publicações Dom Quixote, 2003), que resulta de um profundo trabalho de revisão e de remodelação da edição anterior – de tal modo que, por vezes, temos a impressão de estarmos não perante uma edição revista de uma obra anteriormente publicada, mas sim perante uma obra nova e escrita de raiz.
Sendo uma obra de inspiração, de evocação e de definição açorianas, Raiz Comovida é, na beleza forte do seu título, muito mais do que aquilo que a uma leitura mais apressada possa parecer: não é mais um daqueles livros que costumam dar corpo ao que poderíamos chamar a estética da saudade, baseada no revivalismo de um país que a pouco e pouco vai deixando de ser o país das aldeias ; também não é um livro de memórias regionalistas. Indo muito mais fundo, nesta obra perpassam os tipos humanos que resultaram da amassadura da cultura ibérica tradicional com as águas, o sal e os ventos do mar, polvilhada de vulcões e abalos de terra, e mais de incursões dos piratas do Norte de África, e do isolamento, e de um ou outro arroubo colonialista – e perpassam sobretudo os contadores de histórias, aqueles que podemos tipificar na personagem do Ti José Pascoal de quem o narrador se queixa de que “Já está aqui há muito tempo à minha ilharga pedindo-me para entrar nesta história.[ pelo que, conclui ] Decidi fazer-lhe a vontade e vou já passar-lhe a palavra” (p. 45).
Desde a primeira à última frase de Raiz Comovida – vejamo-la nós em separado nos livros que a fizeram, vejamo-la na sua versão integral, já de si remodelada, de 1987, ou vejamo-la agora nesta nova versão que nos perturba enquanto gesto de inteligência dos tempos que correm e dos gostos que eles acarretam, mas sem nunca esquecer que se trata de uma reconstelação (isto é, de um reagrupamento, ele próprio dinâmico e interactivo) de elementos dispersos que são coerentes entre si, e que mutuamente se atraem, precisamente porque comungam do mesmo passado, e registam a memória que delimita a identidade cultural de quem, como os açorianos, é o fruto, ou o sonho realizado, de uma semente europeia que medrou mergulhada na seiva de um grande mar – e que agora se oferece, na comoção desta Raiz Comovida, à grande vindima que, de cada vez que acontece, representa, no nosso imaginário mediterrânico, a grande festa da vida.
Luiz Fagundes Duarte, 2003
Reflexão sobre a identidade portuguesa contemporânea a partir da análise do século XIX, de António Machado Pires
António Machado Pires:
reflexão sobre a identidade portuguesa contemporânea a partir da análise do século XIX
por Guilherme d'Oliveira Martins in Jornal de Letras, 27/08/2008
Em tempo de Verão podemos ter agradáveis surpresas quando se põe a leitura em dia. Este é um desses casos, que refiro gostosamente. “Luz e Sombras no Século XIX em Portugal”, de António M. Machado, é um conjunto de ensaios sobre a cultura portuguesa do final de oitocentos, a partir das referências intelectuais mais marcantes, em especial, da Geração de 70. A obra que, surpreendentemente, passou algo despercebida no momento em que saiu é de um extraordinário interesse não só pelas sínteses que apresenta, correspondentes a uma reflexão muito séria por parte de um dos nossos melhores especialistas na história da cultura portuguesa contemporânea, mas também pela ligação que procura fazer com o século XX e com as visões actuais sobre a identidade portuguesa. Saliente-se, entre os textos agora dados à estampa, a publicação de “O ensino de Cultura Portuguesa (fundamentos de uma cadeira), texto da última lição de António Machado Pires na Universidade dos Açores, que merece atentíssima leitura – onde se recorda a lição essencial de Vitorino Nemésio, para quem 'Cultura' é “uma perspectiva convergente e unitária de vários ramos do saber"
Machado Pires recorda, aliás, a preocupação de Nemésio, com os seus discípulos, em abrir as suas mentes para a Cultura Portuguesa ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar pistas entre a intuição e a inteligência, a erudição e a capacidade mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e, por que não, a O Malhadinhas de Aquino? Ou o paralelo ou correspondência entre um anjo bochechudo e corado de um retábulo seiscentista e a mundivivência do barroco, ou a imagem nobre simbólico-poética Pégaso, ao cavaleiro medieval (ética da cavalaria) até... ao cavaleiro tauromáquico português estilo Luís XV. Não é tudo a cultura simbolicamente aduzida pela imagem do cavalo? Não era Nemésio o autor dos poemas de O Cavalo Encantado?”. Afinal, está bem presente nesta afirmação uma ideia de cultura como diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e aquilo que se pretende ver e entender. Dai a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada, e agora de novo invocada. E Hernâni Cidade, António José Saraiva, Jorge Dias, Joel Serrão, José-Augusto França são recordados como exemplos de perscrutadores de novas pistas entre a intuição e a inteligência, a erudição e a capacidade de entender o “mundo da vida” – porque, no fundo, reflectir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva.
Lembre-se Fernão Mendes Pinto: “Não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga colectiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar razão do tudo e nada da Vida”. Eis por que razão a Literatura é uma excelente varanda para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a lógica de um poder ou do que a mera ostentação de um saber. E mesmo que o autor tenha «ius imperii» (como foram os casos D. Dinis ou D. Duarte) a verdade é que comunica não pelo império, mas pela palavra e pelo sentimento. Assim, não compreenderemos o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério) ou Cesário (a contradição dos sentimentos) e «tutti quanti». Mas há outras dimensões a não esquecer absolutamente: a geografia de Orlando Ribeiro, as origens históricas, como em Damião Peres ou José Mattoso, as raízes mais remotas em Teófilo Braga e José Leite de Vasconcelos.
Para A. M. Machado Pires, as duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio têm de ser ambas consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois pólos têm de estar presentes na construção do “ser de Portugal” (para usar uma expressão de Lain Entralgo). A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par (na análise de A. J. Saraiva), a construção de um imaginário, a experiência “madre de todas as cousas” (de Duarte Pacheco Pereira e de Camões), os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna (bem evidentes no “Portugal Contemporâneo”), a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo isso nos permite tentar perceber quem somos e o que nos motiva e desafia. Daí termos de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. “Cultura não é um somatório heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas; carregando um considerável conjunto de materiais para forçar a prova”. Nemésio falava ao sabor da memória, usando as palavras como as cerejas mas havia sempre um fio condutor, um fito, um meio de prova. O conjunto dos ensaios apresentados aponta, deste modo, no sentido da procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos. O fim do século, a transição, a análise da crise política, económica e social, Antero de Quental, Eça de Queirós, Carlos Fradique Mendes (heterónimo colectivo de uma geração), Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Manuel Arriaga ocupam o pensamento e a reflexão de Machado Pires – que procura, como que apelando para Jano, respostas para o enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro.
Ao analisar as “raizes etnogénicas do Povo Português” no pensamento de Oliveira Martins (para quem a nossa individualidade “provém de uma dose maior de sangue céltico”, com o peso inerente do messianismo), o autor aponta a força do paradoxo: “Se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino. Transporta a Moïra grega para o drama da causalidade histórica”. E, chamando a atenção para o percurso de vida do historiador oitocentista, fala do pessimismo das suas análises, em contraste com o seu compromisso cívico: “Foi, no entanto, também ministro da Fazenda, preconizando a criação de riqueza agrícola, do fomento rural, o aproveitamento das águas públicas, o repovoamento florestal, a nacionalização dos transportes, promulgando mesmo, nos poucos meses do seu governo, a reorganização das Alfandegas e da Fazenda, talvez acreditando ainda, como nos longínquos anos de 1868, no universalismo das comunicações, na grande federação dos homens livres, na imprensa, na locomotiva, na electricidade, na felicidade pelo Progresso Científico”. Ou seja, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e em que o desastre parecia anunciar-se (o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, os desprestigio das instituições), o cidadão Oliveira Martins não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, claramente demarcado do fatalismo do atraso: “Vemos como o seu amor à Pátria, à História e à dignidade do homem social nunca o abandonou e define com grandeza uma obra vasta e diversa que termina significativamente numa trilogia patriótica e na busca de arquétipos da excelência portuguesa”. Ao contrário das considerações superficiais sobre a Geração de 70, Machado Pires (como há muito nos habituou) procura demonstrar o carácter complexo do seu pensamento e do seu magistério, a atitude crítica positiva orientada num sentido emancipador, a coerência fundamental, centrada nas preocupações ligadas à justiça e à coesão social, bem como à criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da civilização.
Jornal do Observador, de Vitorino Nemésio
VITORINO NEMÉSIO
JORNAL DO OBSERVADOR
Editorial Verbo, Lisboa / 1974
por Pierre Hourcade in Colóquio Letras, n.º 27, setembro de 1975
Assim, um escritor que a si próprio se denomina «observador»,
e que consagra as primeiras páginas do seu livro à definição do que se poderia
chamar o «estatuto» do observador, testemunha do mundo como ele vai e da vida
como ela passa, reúne, sob o título Jornal
do Observador, as notas hebdomadárias que, nesta qualidade, inseriu durante
mais de dois anos numa revista intitulada O
Observador! Tal jogo de espelhos, que remete do autor para os textos
iniciais, depois destes para o órgão em que primeiro tinham aparecido, e
finalmente para a colectânea que, sob a forma de «jornal», os retoma e
reagrupa, divertiu manifestamente Nemésio, sem dúvida por ser uma expressiva
imagem da sua personalidade proteica, incapturável. Quando se julga poder
defini-lo pelo humor, descobre-se nele um fervoroso lírico. Quando se tem a
ilusão de estar a lidar com um céptico bem disposto, cai-se de improviso num
sentimental melancólico ou num apaixonado defensor de certos valores que reputa
fundamentais. Ninguém mais hábil que Vitorino Nemésio para jogar às escondidas
com o leitor, simulando a mais completa ingenuidade.
As crónicas
aqui reunidas não estão arrumadas pela ordem cronológica da sua publicação mas
mais ou menos reagrupadas, com a excepção de alguns, poucos, parênteses, em
séries que sucessivamente dizem respeito à literatura, a escritores e artistas,
depois a episódios e paisagens portugueses (concedendo lugar de honra, como
cumpria, aos dois ambientes predilectos do Autor: Lisboa e os Açores, seu
arquipélago natal); em seguida ao Brasil, cuja realidade viva só bastante tarde
conheceu, mas que havia muito lhe era grato ao espírito e ao coração; à França,
em que se move como em própria casa, e a um pouco do resto da Europa, ao sabor
das suas peregrinações; por fim, à África lusófona, designadamente São Tomé e
Moçambique. Homens, obras, paisagens; viagens através do tempo e do espaço, mas
feitas sempre sob o signo da amizade – uma amizade simultaneamente lúcida,
sorridente e entusiasta.
Ao longo
do caminho, notações penetrantes, que vão muito além do pretexto que as
suscitou, brotam de toda a parte: sobre a ambígua relação entre observação e
informação no mundo de hoje; sobre a linguagem «sempre duplo sentido, alusão»;
sobre Camões, «promovido» pelo povo português «ao absoluto biográfico da
encarnação dos seus valores», lugar-onde «da consciência da missão de um povo à
porta dos Tempos Modernos»; sobre a impossibilidade, mesmo para Teilhard de
Chardin, de lançar uma ponte entre «o conhecimento racional pela fé e o
conhecimento racional pela experiência»; sobre Picasso e Charlot, «expoentes e
ídolos» astuciosamente postos em paralelo com Stravinsky; sobre a velhice («a
desforra do velho válido é de acudir ao novo precocemente envelhecido»); sobre
«o romance consumido […] supermercado às moscas de uma sociedade consumida»;
sobre o diário íntimo, «negação da intimidade»; etc. deixo de remissa outras
páginas, e das melhores.
Seria entretanto
errado ver neste homem de cultura e de fidelidade um passadista ferrenho, que
sistematicamente se nega ao presente. Prova do contrário são, por exemplo, as
páginas em que declara voltar «deslumbrado» de Brasília. O que impressiona é
antes a espantosa ductilidade de espírito, a saltitante juventude deste
septuagenário sempre à espreita de novidades, e para quem as evocações do
passado só têm sentido e valor na medida em que adquirem na sua pena a frescura
duma realidade eternamente viva. Não é de certo por culpa sua que a vertiginosa
aceleração da História no decurso do último ano dá a algumas das suas evocações
um tom nostálgico de in illo tempore.
Mas em Vitorino Nemésio o poeta, que transparece a cada passo no universitário
cultor da crónica, não é daqueles que julgam necessário fazer tábua rasa do
passado para construir o mundo vindouro, mais justo, mais humano, que ele seria
o último a recusar. Simplesmente desejaria – é pelo menos o que creio adivinhar
– que, sob o pretexto de o libertar, não lhe roubassem tudo quanto de válido
permanece na herança cultural e afectiva que recebemos.
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JORNAL DO OBSERVADOR
DE VITORINO NEMÉSIO
UMA JANELA ABERTA PARA O MUNDO
por Luís Martins Fernandes
Curso de Preparação para Doutoramento em
Ciências Literárias
Seminário “Questões da Literatura Autobiográfica”
Lisboa, Setembro de 2000
FCSH Universidade Nova de Lisboa
DE VITORINO NEMÉSIO
UMA JANELA ABERTA PARA O MUNDO
por Luís Martins Fernandes
Curso de Preparação para Doutoramento em
Ciências Literárias
Seminário “Questões da Literatura Autobiográfica”
Lisboa, Setembro de 2000
FCSH Universidade Nova de Lisboa
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
Pai, a sua benção! (antologia de textos)
Pai, a sua bênção! (Antologia de textos de autores açorianos), Coingra, 1995, 313 páginas
Esta obra, que abre a lista de livros recomendados do PRL, é uma antologia de textos de autores açorianos, comemorativa do Ano Internacional da Família, organizada por Álamo Oliveira, Ana Maria Bruno, Mariana Mesquita e Susana Rocha, numa edição da, então, Direção Regional dos Assuntos Culturais e Secretaria Regional da Educação e Cultura.
Servem de mote à época natalícia, estas páginas repletas de referências ao elo
familiar, às vivências do e no lar e ao lado afetivo e emocional que o final de
cada ano aviva. Dezembro é, assim, por excelência (embora não esquecendo os
restantes), o mês da solidariedade, da partilha e da casa acolhedora e
carinhosa que nos envolve e nos restabelece.
Ler textos de autores desde Antero de Quental a Judite Jorge, que abrem e
encerram respetivamente esta obra, com um leque genológico diversificado, mas
urdidos num fio temático unificador, permite-nos alargar os horizontes
interpretativos da ideia de família e de geração. Daí a necessidade de dividir
a exploração desta obra em partes, pois seria nitidamente redutora uma
abordagem apenas parcial. A própria nota de abertura comprova já esta
dificuldade em selecionar os textos, os autores e as obras, «o leitor,
com certeza, reconhecerá omissões e desfará presenças. Mas essa é a
consequência mais saborosa que qualquer antologia pode provocar» (p.13).
Deste modo, dezoito anos após a comemoração do ano internacionalmente dedicado
à família, esta designada “Parte I” atentará em alguns dos exemplos líricos que
refletem poeticamente sobre as ligações geracionais.
O
umbral recebe-nos com a reflexão dolorida da origem da vida no poema «Mãe…», de
Antero, seguindo-se Roberto de Mesquita com o tom melancólico de «Viuvez». O
amor e a saudade são também centrais no poema «Carta da América», de João
Ilhéu, numa imagem tão reconhecida por todos os que viram (e veem) a despedida
dos seus entes queridos para longínquas terras.
Suspende-se, aqui, esta primeira e brevíssima abordagem da obra, com os
«Conselhos», de Alfred Lewis:
“[…] Marido, esposa, meninos e casa;
Amor ligando a tudo; pão na mesa
Leitinho p’ra beber, abrigo à noite
Céu puro no verão, chuva em Dezembro
Isto é bastante p’ra viver contente.”
Importa sublinhar a diversidade dos modos e géneros literários que ilustram as
cerca de trezentas páginas subordinadas ao tema “Família”. Para além
deste tema como fio condutor de palavras, podemos acompanhar diferentes facetas
do ser humano universal com as cambiantes características do viver açoriano.
As figuras feminina da mãe e da avó, bem como as masculinas, do pai e do
avô, predominam nesta antologia de reflexos, pensamentos, imagens e
transfigurações das relações parentais, representando diferentes épocas, com
vivências urbanas e rurais, num misto de distância e proximidade. Comecemos
pelas marcas da separação física, que não deixam quebrar os laços emocionais,
numa carta escrita por Teófilo Braga (1843-1924) a Maria do Carmo Barros Leite:
“Coimbra 7 de Outubro
de 1867
Minha santa mulher; não imagina a consolação profunda que me trouxe a sua carta
de Airão; esperava recebê-la escrita já do Porto. Que paixão debaixo daquelas
palavras simples. Não sei como esta carta me veio lembrar daqueles instantes em
que estava no tanque com o lenço na cabeça à moda do campo. Não a vejo senão
assim. Que admirável que estava, e como me parece ainda mais! [...]” (p.27).
Teófilo fazia as palavras prolongarem-se no papel e aconchegarem a(s) alma(s).
Recordemos também (os que ainda são do tempo das cartas que tardavam em chegar)
a alegria e a ansiedade da receção daquela missiva tão desejada que se guardava
num recanto secreto para reler continuamente e para, mais tarde, guardar como
relíquia de uma fase a eternizar.
Em «Bodas de oiro», de Mateus das Neves (1907-1984), as quadras ao gosto
popular retratam cenas do quotidiano das nossas gentes, ”Oh! que linda festa a
de ontem/Nesta nossa freguesia:/ Bodas de oiro de noivado/ De ti’Bento e da
Maria. [...]” (p. 86), nos cíclicos ritos religiosos e sociais.
Já no texto dramático, Quando o mar galgou a terra: peça regional em
três actos, de Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), a personagem
Miguel questiona, em diálogo com Aninhas, a relação estreita entre pai e filha
e a dificuldade que existe em quebrar esta ligação: “Por isso mesmo é que ele
não te queria perder, se casasses. Casar é cativar... Já não eras dele, mas do
teu marido. Para onde o teu marido te levasse ias tu, por lei de Deus e dos
homens. [...]” (p.57).
Este tomo apresenta-nos tradições, sentimentos e sensações sempre atuais que
nos prendem às pessoas e aos lugares, revelando formas de ser que evoluiram ao
sabor do desenvolvimento social, cultural e tecnológico.
Constitui-se, assim, num documento histórico que proporcionará,
indubitavelmente, momentos de puro deleite literário a todas as gerações, como
nos versos de Adelaide Batista:
“[...] Ali, onde o cachimbo
e a cadeira de balouço
apreendem
um ontem e um amanhã
num agora quente e morno
de uma brasa em fumo
libertada” (p. 262).
Paula Cotter Cabral, 2013
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
Ah! Mònim dum Corisco!..., de Onésimo Teotónio Almeida
Ah! Mònim dum Corisco!..., de Onésimo Teotónio Almeida:
o triunfo e a derrota do emigrante açoriano
por Mónica Serpa Cabral - Universidade de Aveiro (Doutoranda)
Exímio conhecedor da comunidade lusófona existente na costa leste dos Estados Unidos, Onésimo Teotónio Almeida publicou, em 1978, uma obra dramática composta por curtas peças de um acto, que foca os efeitos da emigração. Ah! Mònim dum Corisco!... contém histórias simples, unificadas por um mesmo tema, vividas por seres que se debatem consigo próprios, com um mundo desconhecido, com uma língua diferente, com novos valores e normas de comportamento, com condições de trabalho adversas, com vista a uma adaptação ao espaço controverso e complexo da L(USA)lândia.
Definido pelo próprio autor como «uma porção de Portugal rodeada de América por todos os lados» (Almeida, 1987: 7), o mundo l(USA)landês é uma realidade marginal, resultante da fusão de duas culturas: a portuguesa, nomeadamente, a açoriana, e a americana. Aliás, o título da obra aponta para uma consequência dessa simbiose cultural: o modo de falar do emigrante, assente na transferência de elementos de uma língua para a outra e na criação de novas palavras, como «mònim», referente a dinheiro, o elemento motivador da partida, o objecto da determinação ambiciosa do emigrante. No entanto, como essa obsessão de enriquecer passa pela aceitação de trabalhos árduos, monótonos e desprezíveis e pela dolorosa saudade da terra natal, o «mònim» é qualificado de «corisco», isto é, malvado, maldito, ruim. Focando situações cómicas retiradas do quotidiano, estes textos provocam o riso, através da ironia, da sátira, da caricatura, e desempenham, ao mesmo tempo, uma função ideológico-social, cumprindo a conhecida máxima latina: «ridendo castigat mores».
para continuar a ler, clique aqui em Forma Breve, n. 5 (2007)
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