JOSÉ MARTINS GARCIA
MEMÓRIA DA
TERRA
Col. O Chão
da Palavra
Lisboa,
Veja/1990
por J. M. Bettencourt da Câmara in Colóquio Letras
Até que ponto pode manter-se a
ideia – a que nos habituámos – de que o escritor vive das suas obsessões (vive delas, como criador, porque, homem, vive com elas)? Há, de qualquer modo,
autores de temática mais diversificada, abertos a um mais amplo leque de
questões do que outros. Dir-se-á, porém, que mesmo nestes é possível explicitar
preocupações fundamentais que teimam em permanecer de título para título – as ditas
obsessões que, não menos do que os contornos que sob a sua mão assume a língua,
isto é, o estilo, contribuem para o caracterizar, para face ao leitor, lhe
garantir individualidade, factor maior, porventura, da sua capacidade de
fascínio. A necessidade do reconhecimento – que na história das artes visuais
explica, em boa parte, o multissecular triunfo da mimesis – verifica-se aqui também: o encontro com o escritor na
presente obra ganha interesse simultaneamente pela novidade que apresenta em
relação a trabalhos precedentes e pela permanência do perfil que o discurso
escrito nos faz reconhecer.
Esta perspectiva serviria à
abordagem global de uma obra vasta como é já a de José Martins Garcia. Fiel às
suas obsessões, senhor de um perfil, não se dira, porém, que o escritor
açoriano de facto se repita. O último romance parece demonstrá-lo.
Interessante, pois, na nova obra de Martins Garcia reconhecer o Autor,
reencontrá-lo.
Por exemplo, na desconfiança, que
ele traz de longe, face à etnografia (p. 173: “uns ‘intelectuais’ que deliram
com a criatividade popular”), etnografia que, aliada a determinados entendimentos
das literaturas regionais – da açoriana, que particularmente o implica –, ele
teme sempre oculte o que deveras interessa à leitura: o humano.
No não recear as ideias ou, mesmo,
sem pejo nem pretensão simultaneamente, a filosofia – naturalmente na medida em
que esta possa, sem a prejudicar, ser presente à ficção. (Por exemplo, a
questão do sentido da história ressalta em Contrabando
Original, romance que antecedeu Memória
da Terra. Deste, extraio as frases finais: “Às oito vou entregar estes
cadernos ao António Lima. Ou não?… Um rasto, para quê?... Como não ter
existido… Como não ter existido…”).
No gosto pelos labirintos da
heteronímia – sempre, afinal, como a questão do eu e do outro, num insuportável
jogo de espelhos, onde coisas e imagens delas se confundem. Importante na
última parte de Contrabando Original,
em Memória da Terra Martins Garcia
realiza o tema diferentemente: aqui o narrador reproduz, repete, o percurso
insular do irmão admirado/recusado. (“- Dói-me. É
verdade que entrei aqui com o teu irmão… Mas eu não esperava entrar aqui de
novo contigo, para repetir a mesma cena. É um pesadelo… /- Não é uma repetição”, p. 235.)
Sobretudo, na experiência do outro
como completamente outro, do outro a que o eu se refere não por alguma
identidade, mas por oposição, por negação, por agressão: quer dizer, a questão
da negatividade nas relações humanas, a qual constitui, sem margem para dúvida,
umas das obsessões maiores de Martins Garcia, parece referir, a esse, o perfil
de escritor “maldito”).
Finalmente, no tema da
insularidade, em que me deterei um pouco mais, para além da simples enumeração
que em relação aos anteriores me impus.
Li Contrabando Original como tentame de realização literária do
próprio destino açoriano: da reclusão insular, corajosamente desenhada em
traços de semibarbárie tribal, à diáspora continental (lisboeta) e americana,
pareceu-me ser esse, nitidamente, o propósito subjacente à obra. Escrito na
primeira pessoa, o romance é, efetivamente, menos autobiográfico do que paradigmático.
A experiência pessoal do Autor, imprescindível de um modo ou de outro (por mais
que ele se queira “fingidor”), solicitará apenas uma leitura imediata e
simplificadora (simplista) do livro, que só entendido como paradigma de um
destino açoriano adquire toda a sua dimensão.
Persistindo na escrita na primeira
pessoa, em Memória da Terra o
narrador é, contudo, não-ilhéu. (Estava tentado a dizer: não-açoriano; porém, o
esbatimento do cenário geográfico acentua-se aqui relativamente a Contrabando Original, onde ainda é
possível reconhecer a ilha natal do Autor, o Pico. Em Memória da Terra fala-se da
ilha, embora possa manter-se que se trata dos
Açores, sem que de nenhuma ilha dos Açores se trate.) É, assim, óbvio o
projeto que por seu turno subjaz a Memória
da Terra: pretende-se abordar a questão da ilha a partir de um ponto de
vista pretensamente exterior a ela – outro que não o daqueles que da
maternidade do seu solo se reclamam (ou recusem). É um “continental” que,
chegado à ilha em busca do irmão desaparecido (a referência ao modelo do
romance policial é, mais do que possível, apetecida), a conta – e se conta.
Donde o facto de o romance representar, para o Autor – o qual, nascido nos
Açores, depois de uma experiência de diáspora pela capital, por uma das
colónias portuguesas de África (onde fez a experiência da guerra) e pelos
Estados Unidas da América (onde foi professor, numa universidade), ao
Arquipélago retornou (ensina atualmente na Universidade dos Açores) – a
tentativa para caraterizar o olhar do não-ilhéu sobre a ilha.
Olhar que podia ser o de fascínio
pela generosidade da natureza (o que não redunda necessariamente na caricatura
do olhar turístico), mas esse não se quadra ao perfil do escritor: é a ilha
como espaço fechado, sufocante, que lhe interessa. (como já o fora, sobretudo,
em Varanda de Pilatos de Vitorino
Nemésio. Julgo significativo que Martins Garcia, estudioso notável da obra
nemesiana, se empenhe na “recuperação” do primeiro romance do autor do Mau Tempo no Canal, contra palavras
desde que de facto não devemos tomar ao pé da letra.) Repetem-se ao longo de Memória da Terra as considerações sobre
a ilha, fracção de terra fatidicamente cercada pelo “roncar do mar, a ameaça do
mar” (p.95), e a condição insular, que o narrador, continental, não consegue
fazer sua, nem na realidade física (cita-se o clima que impõe “a viver” –
p.146) nem na dimensão humana (“Mais saudável, sem dúvida, seria agredir esse
mundo mediante a excomunhão duma fracção chamada ‘ilha’, rocha fatídica,
cativeiro, claustro, paradoxalmente cheia de mexericos, boatos, piadas de mau
gosto, recalcamentos, bolor” - p. 91).
Negativamente (em mais do que um
sentido!), José Martins Garcia continua a celebrar a(s) ilha(s).
..........................................
Urbano Bettencourt sobre José Martins Garcia
in BOLETIM DO NÚCLEO CULTURAL DA HORTA Nº 13, 2004
(...)
José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.
Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).
De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.
Urbano Bettencourt sobre José Martins Garcia
in BOLETIM DO NÚCLEO CULTURAL DA HORTA Nº 13, 2004
(...)
José Martins Garcia nasceu na Criação Velha, Ilha do Pico, a 17 de Fevereiro de 1941, tendo feito uma parte dos seus estudos liceais na cidade da Horta. Em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras, onde viria a leccionar entre 1971 e 1977. Chamado a cumprir serviço militar em 1965, foi mobilizado para a Guiné-Bissau, aí permanecendo de 1966 a 1968, experiência que se projecta literariamente em Lugar de Massacre (1975), um dos primeiros romances portugueses a abordar a guerra colonial, numa perspectiva paranóica e demencial; essa experiência acabaria por pontuar, sob variadas formas e em diferentes circunstâncias, a sua obra literária.
Entre 1969 e 1971 foi leitor de Português na Universidade Católica de Paris, e em 1979 rumaria aos Estados Unidos como professor convidado da Brown University (Providence), aí permanecendo até 1984; o rasto desse tempo americano é detectável em Imitação da Morte (1982) e no belíssimo e devastador livro de poemas Temporal (1986).
De seguida, ingressou na Universidade dos Açores, em cujos planos de estudo das licenciaturas introduziu a cadeira de Literatura e Cultura Açorianas e onde se doutorou com uma tese sobre Fernando Pessoa; nesta Universidade terminou a sua carreira académica como Professor Catedrático, tendo ainda ocupado o cargo de Vice-Reitor e dirigido a revista Arquipélago, do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas. Faleceu em Ponta Delgada a 4 de Novembro de 2002.
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