sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Reflexão sobre a identidade portuguesa contemporânea a partir da análise do século XIX, de António Machado Pires


António Machado Pires:
reflexão sobre a identidade portuguesa contemporânea a partir da análise do século XIX


por Guilherme d'Oliveira Martins in Jornal de Letras, 27/08/2008


Em tempo de Verão podemos ter agradáveis surpresas quando se põe a leitura em dia. Este é um desses casos, que refiro gostosamente. “Luz e Sombras no Século XIX em Portugal”, de António M. Machado, é um conjunto de ensaios sobre a cultura portuguesa do final de oitocentos, a partir das referências intelectuais mais marcantes, em especial, da Geração de 70. A obra que, surpreendentemente, passou algo despercebida no momento em que saiu é de um extraordinário interesse não só pelas sínteses que apresenta, correspondentes a uma reflexão muito séria por parte de um dos nossos melhores especialistas na história da cultura portuguesa contemporânea, mas também pela ligação que procura fazer com o século XX e com as visões actuais sobre a identidade portuguesa. Saliente-se, entre os textos agora dados à estampa, a publicação de “O ensino de Cultura Portuguesa (fundamentos de uma cadeira), texto da última lição de António Machado Pires na Universidade dos Açores, que merece atentíssima leitura – onde se recorda a lição essencial de Vitorino Nemésio, para quem 'Cultura' é “uma perspectiva convergente e unitária de vários ramos do saber"

Machado Pires recorda, aliás, a preocupação de Nemésio, com os seus discípulos, em abrir as suas mentes para a Cultura Portuguesa ligando e relacionando realidades aparentemente distintas: “E por ‘ligar as coisas’ deve entender-se ligar pistas entre a intuição e a inteligência, a erudição e a capacidade mesmo, não apenas somar conhecimentos: fazer relacionações entre conhecimentos convencionalmente arrumados em cadeiras diferentes, ligar uma romaria a uma feira, esta a um modelo de vida, este à evocação de um almocreve, este a Gil Vicente e, por que não, a O Malhadinhas de Aquino? Ou o paralelo ou correspondência entre um anjo bochechudo e corado de um retábulo seiscentista e a mundivivência do barroco, ou a imagem nobre simbólico-poética Pégaso, ao cavaleiro medieval (ética da cavalaria) até... ao cavaleiro tauromáquico português estilo Luís XV. Não é tudo a cultura simbolicamente aduzida pela imagem do cavalo? Não era Nemésio o autor dos poemas de O Cavalo Encantado?”. Afinal, está bem presente nesta afirmação uma ideia de cultura como diálogo e confronto, entre quem vê e tenta compreender e aquilo que se pretende ver e entender. Dai a metáfora da varanda para ver a Cultura, tantas vezes usada, e agora de novo invocada. E Hernâni Cidade, António José Saraiva, Jorge Dias, Joel Serrão, José-Augusto França são recordados como exemplos de perscrutadores de novas pistas entre a intuição e a inteligência, a erudição e a capacidade de entender o “mundo da vida” – porque, no fundo, reflectir sobre a cultura é fazê-la, construí-la, interpretá-la e torná-la viva.

Lembre-se Fernão Mendes Pinto: “Não é só uma narração de experiências, percursos de paisagens exóticas ou encontros e desencontros de povos (Ocidente e Oriente), é a ironia da vida, a dor humana, pecado, entusiasmo e castigo, alegrias e lágrimas, voluntarismos e disponibilidades, uma grandiosa saga colectiva de um povo (nem sempre exemplar), mas provando a exemplar razão do tudo e nada da Vida”. Eis por que razão a Literatura é uma excelente varanda para avistar e compreender a Cultura como panorama, uma vez que temos o testemunho concreto, mais do que a lógica de um poder ou do que a mera ostentação de um saber. E mesmo que o autor tenha «ius imperii» (como foram os casos D. Dinis ou D. Duarte) a verdade é que comunica não pelo império, mas pela palavra e pelo sentimento. Assim, não compreenderemos o século XIX português sem ler Camilo (“raptos, fugas e famílias desgraçadas”), Júlio Dinis (“a conciliação social”), Eça (a ironia como método, devendo ser levada muito a sério) ou Cesário (a contradição dos sentimentos) e «tutti quanti». Mas há outras dimensões a não esquecer absolutamente: a geografia de Orlando Ribeiro, as origens históricas, como em Damião Peres ou José Mattoso, as raízes mais remotas em Teófilo Braga e José Leite de Vasconcelos.

Para A. M. Machado Pires, as duas linhas de pensamento dominantes na reflexão sobre a cultura portuguesa, a idealista e a racionalista, representadas por Teixeira de Pascoaes e António Sérgio têm de ser ambas consideradas “para o balanço de ser português na vida, na cultura e no mundo”. Dando maior importância ora a uma ora a outra, o certo é que os dois pólos têm de estar presentes na construção do “ser de Portugal” (para usar uma expressão de Lain Entralgo). A vontade, o sentimento de pertença, “a estruturação da Cultura e a organização do Estado”, caminhando a par (na análise de A. J. Saraiva), a construção de um imaginário, a experiência “madre de todas as cousas” (de Duarte Pacheco Pereira e de Camões), os conflitos entre a sociedade antiga e a sociedade moderna (bem evidentes no “Portugal Contemporâneo”), a compreensão de um culto de sentimentos contraditórios, os mitos da origem, de resistência ou de predestinação, tudo isso nos permite tentar perceber quem somos e o que nos motiva e desafia. Daí termos de comparar, de ver de dentro e de fora, de cruzar saberes e campos de pesquisa. “Cultura não é um somatório heteróclito, indiferenciado, anódino e maçador, mas um caminho coerente para um fim demonstrável no seu todo, um rasgão na neblina de dúvidas e problemas; carregando um considerável conjunto de materiais para forçar a prova”. Nemésio falava ao sabor da memória, usando as palavras como as cerejas mas havia sempre um fio condutor, um fito, um meio de prova. O conjunto dos ensaios apresentados aponta, deste modo, no sentido da procura de caminhos explicativos, de linhas de reflexão, de sínteses e de paradoxos. O fim do século, a transição, a análise da crise política, económica e social, Antero de Quental, Eça de Queirós, Carlos Fradique Mendes (heterónimo colectivo de uma geração), Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Manuel Arriaga ocupam o pensamento e a reflexão de Machado Pires – que procura, como que apelando para Jano, respostas para o enigma persistente e contraditório de uma sociedade que oscila entre o messianismo e a vontade, entre o mito e a racionalidade, entre a crítica e a sobrevivência, entre o presente e o futuro.

Ao analisar as “raizes etnogénicas do Povo Português” no pensamento de Oliveira Martins (para quem a nossa individualidade “provém de uma dose maior de sangue céltico”, com o peso inerente do messianismo), o autor aponta a força do paradoxo: “Se o historiador busca a razão dos acontecimentos, culpa os homens; se procura os imperativos da Raça, culpa o Destino. Transporta a Moïra grega para o drama da causalidade histórica”. E, chamando a atenção para o percurso de vida do historiador oitocentista, fala do pessimismo das suas análises, em contraste com o seu compromisso cívico: “Foi, no entanto, também ministro da Fazenda, preconizando a criação de riqueza agrícola, do fomento rural, o aproveitamento das águas públicas, o repovoamento florestal, a nacionalização dos transportes, promulgando mesmo, nos poucos meses do seu governo, a reorganização das Alfandegas e da Fazenda, talvez acreditando ainda, como nos longínquos anos de 1868, no universalismo das comunicações, na grande federação dos homens livres, na imprensa, na locomotiva, na electricidade, na felicidade pelo Progresso Científico”. Ou seja, num momento em que, nos anos 90 do século XIX, a decadência se manifestava e em que o desastre parecia anunciar-se (o Ultimato, a bancarrota, a dívida pública, a crise do regime, os desprestigio das instituições), o cidadão Oliveira Martins não baixa os braços e revela o sentido positivo da atitude crítica, claramente demarcado do fatalismo do atraso: “Vemos como o seu amor à Pátria, à História e à dignidade do homem social nunca o abandonou e define com grandeza uma obra vasta e diversa que termina significativamente numa trilogia patriótica e na busca de arquétipos da excelência portuguesa”. Ao contrário das considerações superficiais sobre a Geração de 70, Machado Pires (como há muito nos habituou) procura demonstrar o carácter complexo do seu pensamento e do seu magistério, a atitude crítica positiva orientada num sentido emancipador, a coerência fundamental, centrada nas preocupações ligadas à justiça e à coesão social, bem como à criação de condições concretas para pôr o coração do país a bater ao ritmo da civilização.


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