sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A cor cíclame e os desertos, de Maria de Fátima Borges


Borges, Maria de Fátima, A cor cíclame e os desertos, Lisboa, Cotovia, 1989, 78 páginas.

                Nesta obra, reúnem-se onze estórias de vida, num caleidoscópio de relações jogado no quotidiano possível da existência humana.
                Com tempo e espaço indefinidos e, por isso, intemporais, o núcleo da ação de cada conto constrói-se a partir de uma linguagem profundamente densa e emocional que encerra o universo da reflexão sobre o papel do ser humano, enquanto elo de ligação, no espaço que ocupa na vida (de alguém) e a sua importância no mundo.
A vivência do tempo cinge-se à linguagem da solidão, criando uma atmosfera de neblina emocional que paira sobre as personagens desta obra: “confundo tudo: o que me disseram com aquilo que vou imaginando que teria acontecido para preencher o tempo que me resta. […] Mas aqui será talvez o meu lugar. É como se, apesar de tudo, esperasse.” (p.56).
As personagens surgem como esboço, primam pela indefinição, facto que, simultaneamente, proporciona uma (possível) identificação inquietante do leitor com as figuras desenhadas nos contos. Neste sentido, a expressividade dos contextos relacionais organiza-se sob a égide da ambiguidade, do conhecimento de si e, sobretudo, da necessidade urgente de encontrar um espaço próprio, uma identidade comum num relacionamento a dois, “queríamos um sítio sem gente, onde não houvesse outras respirações […] pois já nessa altura eu sabia que o dia dos outros são eles que o fazem e o vivem à sua maneira que nada tem a ver com a minha em tempo algum” (p.9).
As figuras femininas prevalecem, neste universo, em personagens como Adelina ou Zurília, num complexo diálogo unilateral que se confunde, diversas vezes, com um solilóquio afetivamente perturbante.
No conto «A estátua», a ação centra-se na busca da identidade da pessoa que deu origem a uma estátua situada no meio da praceta. Dada a inexistência de referências sobre a figura representada, procuram-se respostas que, uma vez encontradas, nos fazem realmente pensar sobre a importância do legado indelével do Homem.
A intemporalidade dos textos constrói-se a partir das figuras aí representadas por serem credíveis pela semelhança com o quotidiano de cada ser humano gregário, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Basta ouvir “as conversas” das personagens, espreitar os seus pensamentos e, certamente, encontraremos uma projeção provável da nossa existência.
Assim, recuperamos, paralelamente, ao longo da obra, um sentido universal do ser pessoa, uma maneira de sentir o outro e representar (em comunhão ou discórdia) os papéis sociais e emocionais que nos são atribuídos por via do livre arbítrio, para além de os que nos são inexoravelmente impostos.


Paula Cotter Cabral

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Lagoa dos Castores, de Francisco Cota Fagundes

 [N. Agualva, Praia da Vitória, ilha Terceira, a 12.4.1944] Emigrou para os Estados Unidos em 1963, depois de, na sua ilha, ter apenas completado a escola primária e recebido dois anos de explicações de inglês. Depois de três anos de trabalho nas vacarias do Vale de San Joaquín na Califórnia, mudou-se para Los Angeles, tendo frequentado o Los Angeles Valley College e posteriormente a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, recebendo aí um duplo Bacharelato em Português e Espanhol e depois um Mestrado em Estudos Luso-Brasileiros, seguido de um Doutoramento em 1976, com uma dissertação subordinada ao tema A Lírica de Fernando Pessoa: Quatro Visões do Tempo. Desde essa data lecciona na Universidade de Massachusetts Amherst, onde é Professor Catedrático de Português, leccionando também língua e literatura espanholas.

Francisco Cota Fagundes in enciclopédia açoriana, DRaC


Álamo Oliveira e Daniel de Sá escrevem sobre a obra de Francisco Cota Fagundes, A lagoa dos Castores.


Mar pela Proa, de Dias de Melo

Mar pela Proa, de Dias de Melo

            Ao (re)editar a obra de Dias de Melo, a Ver Açor prestou um inestimável serviço à cultura açoriana, porquanto o autor ocupa um lugar ímpar na literatura marcada pela açorianidade. Não é, porém, Dias de Melo apenas o “cronista” da saga baleeira, como muito vulgarmente se pensa, sequer tão-somente um escritor que legou à posteridade a “alma açoriana” (embora não sejam estas tarefas menores); é um criador de valor maior no contexto da produção literária não só açoriana mas também nacional. Mar pela Proa, de que diz Daniel de Sá ser “talvez a mais extraordinária das obras [de Dias de Melo]”, com “força bastante para se tornar universal”, está agora ao dispor do público numa edição extremamente cuidada, de inegável bom gosto gráfico – e os bons autores merecem boas encadernações, boa divulgação, trabalho em que a Ver Açor se esmerou.
            Mar pela Proa poder-se-á considerar uma novela (ou um curto romance, dadas as suas poucas mais de 150 páginas), cuja “estória” – que se desenvolve em torno, basicamente, de um episódio – não deixa de ter contornos épicos. Dividido em três partes, que por sua vez se subdividem (a Primeira Parte em dois momentos: Estes são os nossos botes e Amarras partidas, a Segunda Parte em três: Rumo perdido, Nesga de céu na cerração e Duas estrela), sendo que a Terceira Parte contém apenas um momento: Chamas reavivadas, o livro tem tanto de regionalista como (parafraseando Daniel de Sá) de universal. Se são da Calheta do Nesquim os homens que se lançam ao mar, orgulhosos da sua Companhia Nova (companhia formada por baleeiros independentes, donos dos seus botes, sem a outro senhor servirem que não ao companheirismo de homens livres), se falam e agem como gente da(s) ilha(s), não deixam de ser de qualquer lugar ou tempo os sentimentos que perpassam a obra. Por outras palavras, o que há de espacial e temporalmente particularizado nos homens ilhéus de Mar pela Proa é concomitantemente universal, pois soube Dias de Melo mostrar num grupo de homens aquilo que define o Homem – os seus desejos, os seus sonhos, a sua força, a sua debilidade, sobretudo o seu sentido de união e de empenho numa tarefa comum.
            Assim, Mar pela Proa assume, na aventura dos baleeiros arrostados com uma tormenta, uma dimensão verdadeiramente épica. Por um lado, temos a considerar o sentimento de pertença a um grupo e o companheirismo na construção de uma “obra” (a Companhia Nova), por outro, é de relevar batalha do(s) homem(ns) frente aos elementos, num esforço desmedido para salvarem a vida – mas também o sonho (as embarcações). A lição épica só a reconhecemos, todavia, no fim, quando António Marroco (o herói que se destaca por ser o que mais agruras enfrenta até vencer o mar) diz acreditar que é possível o recomeço. De facto, tal como acontece em qualquer epopeia, muitos são os reveses com que tem de se confrontar o Homem, – e na epopeia destes baleeiros há momentos de fraqueza, que gera a desunião. Se uma canoa se perdeu – e com ela vidas – foi, é-nos dito explicitamente, porque “as amarras se partiram”. Porém, o herói – no sentido épico – luta e acredita. O herói que é Manuel Marroco.
            Se Mar pela Proa vive essencialmente de um episódio trágico-marítimo, não deixa de fazer incursões na vida pessoal das personagens, conferindo-lhes (maior) humanidade. Assim, surgem analepses frequentes onde são narrados pequenos episódios das “estórias” particulares de alguns dos homens. Também nestas incursões se destaca Manuel Marroco, de cuja vida – sempre de luta e perseverança – ficamos a saber alguns pormenores. Esta personagem comove e alenta, pois de um homem lutador, pelo sonho comandado e pelo amor aos seus se trata. Uma espécie de paradigma do Homem, sem perder, contudo, a sua individualidade de filho da ilha.
            Mas não só pela “estória” narrada, pelo seu valor testemunhal, se destaca Mar pela Proa. Com efeito, Dias de Melo é senhor de um registo discursivo (ou de vários) esteticamente marcante(s). Assente numa narração feita do surpreender de momentos e de um manejamento hábil e natural do discurso directo, a obra flui pela palavra como se esta tivesse o compasso do próprio mar. Os regionalismos do discurso directo, “apanhados” nas falas das personagens, têm, naturalmente, grande interesse etnográfico – mas, muito mais do que isso, é o ritmo do discurso directo que prende o leitor. Uma palavra ou duas, frases inacabadas, uma reflexão atirada ao vento tempestuoso – tudo isto confere uma plasticidade incomum ao texto de Dias de Melo. Feita de uma excelente intersecção entre narração, descrição e diálogo (ou monólogo), a escrita de Dias de Melo poder-se-á considerar impressionista, no sentido em que capta instantes, sugere impressões. Tal escrita assenta num trabalho da palavra cuidado e ao mesmo tempo, diríamos, natural, isto é, aparentemente fácil. Todavia, há no labor da frase curta (por vezes muito curta) de Dias de Melo um virtuosismo digno de reparo. Trata-se de uma prosa moderna por esse tipo de frase, pelos refrões frequentes (as palavras do louco ou do jovem que fica no mar), pela síntese de ideias expressas em palavras densas.
            Por tudo o que foi dito e pelo imenso que ficou por dizer, Mar pela Proa é uma leitura que vivamente se recomenda. Dias de Melo não é, de forma alguma, apenas um escritor nosso. É um excelente artista da palavra.
                                                                                                         
Paula de Sousa Lima

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Tempo Adiado, de Paula de Sousa Lima


            Foi lançado no dia 15 de Outubro, na Livraria Bertrand, em Ponta Delgada, um livro singular de uma autora cuja evolução tenho seguido com muito interesse e agrado. Tempo Adiado, de Paula Sousa Lima, constitui uma obra de maturidade de alguém que faz da escrita uma paixão maior e um trabalho concentrado de exploração de possibilidades novas de expressão criativa.
            Libertando-se de catalogações simples e restritivas, o livro contém ressonâncias literárias de uma tradição que recua ao legado clássico e judaico-cristã (patente nas citações em epígrafe, nas quais se ilumina a entrada para o universo narrativo a partir de uma fonte trágica – Medeia – e de outra bíblica – o Livro do Êxodo) e recorda momentos felizes da literatura portuguesa.
            Na convergência do legado clássico com a herança judaico-cristã encontramos um elemento comum que nos fornece uma indicação clara do factor que desencadeia a narrativa: a morte criminosa, que desafia a ordem natural da vida ao abater-se sobre os seres mais desprotegidos, inocentes e inspiradores da benevolência humana, as crianças. Na tragédia de Eurípides, a mulher traída vinga-se matando aquela que ocupa o seu lugar, o pai desta e os seus próprios filhos, para que o homem que a traiu sofra de um só golpe uma dor insuportável com a perda de todos os que ama; o episódio do Êxodo anuncia a morte de todos os primogénitos nascidos no Egipto. Somos, assim, preparados para uma narrativa assombrada pela morte de crianças e protagonizada por uma figura feminina complexa, na qual os actos de desmesura tingidos de horror se aliam à coragem da inconformidade ante a ordem patriarcal.
Intuindo uma tragédia de alcance colectivo (assim o sugere a referência à morte dos primogénitos), iniciamo-nos na leitura de uma obra que não só conta uma história como o faz de modo engenhoso e transgressor, ao ponto de se sentir a necessidade de reflexão sobre o tipo de escrita que a expressa.
São vários os momentos em que se cede à necessidade de explicitar a consciência da transgressão. Indissociável da dificuldade do ofício de escrever, da soberania da palavra que nos comanda em vez de ser por nós comandada, a perplexidade perante a classificação da escrita faz-nos lembrar as Viagens na Minha Terra quando, por exemplo, nos deparamos com “O que é isto? Que escrevi? Da tragédia o tema, o tom, mas a estrutura, este texto não tem propriamente estrutura” (p. 140).
A falta de estrutura resulta da articulação de vários modos de representação literária. Convivendo com a música (devido à presença daquilo que podemos chamar refrões – recantos de palavras favoritas a que algumas personagens regressam com frequência e naturalidade), o drama e a lírica; alternando um registo leve, por vezes cómico, com temas pesados (o incesto, a vingança, a culpa, o castigo e a redenção), a palavra literária surge envolta numa cadência musical que amplifica o seu poder expressivo.
O ritmo do livro apoia-se numa utilização engenhosa do tempo. Dotada de centralidade inequívoca, pelo modo como impera na indicação dos títulos dos capítulos, a categoria temporal é um elemento permanente e complexo em Tempo Adiado. Distribuindo-se por duas épocas diferentes (Agosto de 1874 e Agosto de 1975), esta complexidade mostra-se não só na sua especificação estival (parece que tudo o que merece ser contado aconteceu em Agosto de 1874 ou em Agosto de 1975), mas no decurso de nove meses (entre Novembro 1874 e Agosto de 1875, o período de gestação de uma criança), bem como ao longo de 100 anos. Recuado e próximo (reportando-se ao século XIX e ao século XX), estático (espartilhado entre o primeiro e o último dia dum mês (ou “os dias são sempre o mesmo dia”, como se diz na página 49, ou “a dor é sempre a mesma, nada muda, nada se transforma”, p.50), e móvel, ora apresentando-se-nos como “um instante de vida” (p.42), ora escorrendo pelos nove meses que dura a gestação duma criança, ora estendendo-se pelos cem anos que introduzem variações significativas na história, na cultura e na mentalidade, ao estatismo do mês de Agosto (um mês trágico?) opõe-se o dinamismo de um século findo o qual se resolve a tragédia. O tempo que anuncia a morte no compasso dos sinos que dobram é, assim, simultaneamente desconhecido no âmbito da nossa experiência histórica (pois não há notícia de época alguma em que todas as meninas nascessem mortas) e representativo dum dos marcos mais relevantes da história portuguesa: o 25 de Abril de 1974.
Em Agosto de 1975, os padres pregam a doutrina da revolução, os directores são saneados, as propriedades ocupadas e o pessoal doméstico não sabe como reagir às novidades sociais. No interior desta mudança social pulsa ainda uma ciclicidade reiterada, ao nível formal, pelo respeito minucioso à duração de cada capítulo-mês e ao fluir cadenciado de páginas que, à semelhança das horas e dos dias, obedecem também a uma estrutura iterativa, repetindo um padrão formal: a primeira página de cada um destes momentos inicia-se sempre com um apontamento lírico, numa prosa poética que anuncia o que a narrativa contará nas páginas seguintes.
            Renovação mais do que repetição é o resultado desta cadência singular. Se o segundo capítulo afirma que “o princípio é o fim a germinar”, para logo a seguir se dizer “antes do princípio há sempre outro princípio” e se sugerir “talvez o princípio de todos os princípios seja a dor” (p. 40), o resultado de todo este processo só pode ser trágico: a queda, o fim – “depois do princípio nunca mais se recupera a inocência” (p.42). Mas até o fim pode ser um novo princípio. Apetece recordar as palavras que Jean-Luc Godard usou na curta-metragem de divulgação da Viennale de 2008: “La catastrophe… C’est la première strophe… D’un poème… D’amour”. Tempo Adiado pode ser visto como a ilustração literária desta imagem cinemática. Nele uma catástrofe desencadeia uma sucessão de princípios trágicos que culminam com a abolição do fim. Por outras palavras, os princípios derrotam a queda, uma estratégia que transparece até ao nível formal.
Frases interrompidas antes de serem concluídas, e que, portanto, nunca chegam ao fim, de que constitui exemplo a recorrente referência a “Um sentimento que” (p.10), ou “Comentar o tempo, tem feito dias lindos, apesar de” (p.12). Na caracterização de Ester, diz-se que ela é “Feia, magra, com um ar” (p.37) e a recordação do despontar dum amor fica (in)completa assim: “depois conheci o meu homem, que estava a fazer a tropa e” (p.133).
Para além desta estratégia, há opções gráficas que reflectem a abolição dos fins. A abertura infinita da frase, por via do desbravamento de palavras fortes que empalidecem o caminho de papel que têm pela frente, os parágrafos serenamente alinhados à esquerda, sem distracções formais e convencionais, o diálogo descuidando o travessão que habitualmente o sinaliza, são outros tantos sinais de uma escrita que se quer pura, limpa de convenções, sem as abolir por completo; uma escrita que respeita as pausas, mantendo os sinais de pontuação, embora adequando-os ao grau de literacia de cada personagem – uma escrita orgânica, que desafia os limites, abrindo-se à linha, ao papel, ao leitor, o qual é convidado a completar o pensamento, a participar na emoção, a imaginar o “sentimento que”.
Estas são infracções criativas e criadoras, não destrutivas da língua e da ordem, infracções inauguradoras de outra ordem, a ordem do texto artístico, inovador, desconcertante, possuidor duma lógica própria, que abala as certezas, que apresenta outras, mais subtis, dimensões da verdade, para as quais também concorrem as alternâncias na narração e nos diálogos, prosseguindo lado a lado, sem hierarquias, paragens ou cortes. Narrador e personagens encontram-se e desencontram-se, no texto como na vida, por entre palavras e silêncios, confundindo-se, por vezes, e nesta confusão conferindo uma agilidade à leitura que ganha ritmo nas alternâncias nem sempre identificadas, mas sentidas na tinta e na brancura do papel:
“Lia, como vão os seus pais?
A sogra interrompe o silêncio com o assunto menos próprio, devia ter feito um comentário sobre o tempo, um tema inócuo, mas não, que maçada, havia eu de fazer esta pergunta inoportuna” (p. 17).
O narrador cede a vez e a voz, a meio da frase, à personagem que se pensa e se expressa forçando caminho por entre vozes anteriores. Este é um dos aspectos mais recorrentes e bem conseguidos da obra: o regresso aos recantos que abrigam personagens e as suas palavras, as quais ora alternam, ora se cruzam, ora se sobrepõem, ora se afastam e se deixam respirar.
            A renovação contamina a linguagem, libertando-a de imagens fossilizadas e criando imagens fortes, nalguns casos de uma violência quase sacrificial, nas quais a verbalização gráfica de uma visão traumática reverbera no sangue que pinga da galinha degolada ou no ramo de papoilas desfloradas manchando de vermelho o mármore branco.
            O esforço concentrado na escolha das palavras manifesta-se noutros pequenos detalhes: todas as raparigas que vão trabalhar para o casarão têm nomes começados por A (Alcina, Adelaide, Amélia, Adozinda, Arlinda, Angelina, Aurora, Alice, Amparo) – as As representadas pelo artigo definido que se refere ao género feminino são todas integradas num mesmo destino, não só por serem mulheres, mas por serem mulheres incapazes de se opor ao poder masculino.
            Ter filhos – a hipótese maldita que se transforma em maldição real – é vivida pelas figuras femininas do livro de um modo que faz da escrita um lugar privilegiado para a expressão de sentimentos universais. Duas personagens ocupam, neste campo, um lugar de destaque: Sara, no século XIX, e Lia, no século XX, assumem um peso acrescido pelo facto de se dedicarem à escrita (a primeira, uma espécie de diarista a posteriori, procura fixar a memória em papel; a segunda, uma escritora já conhecida, tenta reactivar a ficção). Nas duas, escrever é “não [como] uma terapia”, mas “um imperativo”, com vista, ora a que se possa registar “tudo, tudo” (p.35), ora a “riscar palavras” como “humilhação”, “brancura” ou “silêncio”. A primeira quer lembrar para sempre uma visão que a atormenta; a segunda quer esquecer para sempre uma ausência que a derrota.
Tempo Adiado é, acima de tudo, um livro sobre palavras e o peso que elas têm na nossa vida: “as palavras é que nos procuram, nos encontram, nos possuem, não pode ser ao contrário” (p.60). A certa altura intuímos o poder salvífico da escrita, capaz de transmutar metáforas, de derrotar o fim e de expressar com frescura transgressora a presença duma nova voz literária em Portugal.


Leonor Sampaio

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O Pastor das Casas Mortas, de Daniel de Sá

            A mais recente obra ficcional de Daniel de Sá, nas livrarias desde 2007, aborda uma questão preocupante no/do “Portugal profundo” – a desertificação a que, cada vez mais, estão sujeitas pequenas aldeias perdidas no tempo da globalização, neste nosso tempo que é um tempo suspenso nas aldeias onde se diria que simplesmente o tempo parou. As temáticas da solidão, do abandono, do envelhecimento, mas igualmente da perseverança, do amor à terra, estão, assim, retratadas nesta obra de Daniel de Sá.
            A obra surge com a designação explícita de novela, que não questionamos, mas que podia ser igualmente a de romance. Talvez a pouca extensão do livro (noventa e cinco páginas) tenha sido a razão para o classificar como novela. De resto, não temos propriamente a linearidade da novela – como não temos a (não necessária) complexidade de intriga que caracteriza o romance.
            A obra de Daniel de Sá centra-se numa pequena aldeia, cujos habitantes, envelhecidos, vão paulatinamente desaparecendo (partindo para outras paragem ou morrendo), ficando apenas “as casa mortas” e o seu “pastor” – Manuel Cordovão. É esta personagem que dá unidade à estória – que é, afinal e antes de mais, a estória da aldeia, mais do que a estória de Manuel Cordovão.
            Dividida em trinta e um pequenos capítulos – todos eles com um título sugestivo – a novela quase se pode considerar um conjunto de pequenos contos, cada um focando memórias, acontecimentos, vivências, personagens da aldeia em constante e acelerada desertificação. Se alguns desses”contos” não formam uma narrativa completa só por si, só tomando total sentido adentro da obra como conjunto, outros há que funcionam perfeitamente enquanto micro-narrativas. Por outro lado, no conjunto dessas micro-narrativas, pode ler-se não só um tempo (que está a extinguir-se), como a vida do protagonista – Manuel Cordovão. Este permanece completamente sozinho na aldeia, depois de ver partir os amigos, guardando-lhes ciosamente as casas despovoadas, para que a memória, ao menos, se não vá. É a memória que povoa a vida de Manuel Cordovão, na sua insistência para que a aldeia não morra, para contrariar o tempo que nele continua a habitar – como nas casas.
            Desenha-se também, ao longo das micro-narrativas, uma estória de amor – a de Manuel Cordovão e Graça – que, tal como as estórias das casas, fica apenas como memória. Destinado desde o princípio a não se consumar, embora haja um momento de esperança no final (logo gorada), o amor de Manuel Cordovão por Graça permanece, assim como a aldeia permanece – mas apenas em casas desabitadas.
            Obra atenta ao pormenor e ao sentimento (sem ser gritado, antes melancolicamente subjacente a situações), O Pastor das Casas Mortas retrata exemplarmente situações que poderiam ser reais, ou que o são na escrita de Daniel de Sá. É assim que surgem os objectos guardados dentro das “casas mortas”, memória da vida dos seus antigos possuidores, os hábitos dos homens e mulheres que habitaram essas casas, a sua vida (ou fragmentos dela), até, se pode dizer, a sua alma. Ou a alma da aldeia – que Manuel Cordovão teima em não deixar morrer. Se outra virtude não tivesse esta novela, teria esta de ser testemunho de algo que entristece quem vê despovoar-se as aldeias outrora plenas de vida – vida essa patente, na novela, em cada objecto das casa abandonadas, ou não totalmente abandonadas, porquanto ainda têm o seu “pastor”.
            De leitura fácil, não obstante a mestria linguística do autor, esta novela de Daniel de Sá pode considerar-se aliciante pela sua estruturação em micro-narrativas (que não cansam o leitor) e pela captação de sentimentos a que, certamente, o mesmo leitor não ficará alheio. Não se alçou o autor a construir uma obra de criatividade literária inovadora; antes foi pelo caminho seguro de uma estrutura reconhecível e de uma linguagem tendencialmente clássica. Não são defeitos tais opções. Uma linguagem muito escorreita, muitíssimo cuidada (virtudes que vão desaparecendo em muitos escritores ou pseudo-escritores), marcada pela simplicidade e, concomitantemente, por um inequívoco labor estético, coloca seguramente Daniel de Sá num lugar importante não só da literatura açoriana mas da literatura nacional.
            Contudo, eventualmente porque, diz o povo, “santos da casa não fazem milagres”, talvez esta novela não tenha tido entre nós a repercussão que merece. Vendem-se pouco os autores açorianos – preteridos pelas Margaridas Rebelo Pinto deste país mais deserto de cultura do que a aldeia de Manuel Cordovão de habitantes. Só por isso, aqui vai uma sugestão (e uma certeza) – ler esta obra de Daniel de Sá certamente proporcionará um tempo de ameno lazer, de fruição estética e de reflexão a quem dela se aproximar com a vontade de conhecer algo do que não tão poucos escritores açorianos têm para oferecer.
                                                                                          
Paula de Sousa Lima