sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Peso do Hífen, de Onésimo Teotónio Almeida


Sinopse

Quase quarenta anos de América do Norte estão na base dos ensaios reunidos neste volume. A problemática dos valores, da ideologia, das mundividências, e a intimamente associada questão da identidade cultural, são centrais nas preocupações teóricas do autor que, quando lhe apontavam comportamentos estranhos nos EUA, costumava dizer «Esperem vinte anos que os terão aqui!» e agora afirma que se operou uma redução quase total desse espaço de tempo, residindo a diferença apenas na intensidade ou frequência dos problemas. Num mundo a globalizar-se vertiginosamente, cada vez esta temática é menos alheia ao universo cultural português, tendo-se tornado pão quotidiano nos noticiários e debates televisivos.

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O Peso do Hífen – Ensaios sobre a experiência luso-americana
de Onésimo Teotónio Almeida

por Victor Rui Dores in Faialonline

Estudioso acérrimo da história cultural, do imaginário e de tradição literária dos Açores, observador atento do real luso-americano, Onésimo Teotónio Almeida continua a publicar livros com espantosa regularidade, numa linha de contínua e continuada coerência com a sua obra primordial de onde irradia todo o seu imaginário: Da Vida Quotidiana na lUSAlândia (1975).

Deste autor acabo de ler, com natural expectativa, O Peso do Hífen, Ensaios sobre a experiência luso-americana (Imprensa de Ciências Sociais, 2010), que reúne uma série de textos, escritos entre 1983 e 2010, concebidos para ensaios, palestras e outras comunicações, e que agora surgem em versões alargadas, aprofundadas, expandidas, actualizadas e/ou reescritas.

Falar de Onésimo é falar de um pensamento analítico e da visceralidade de uma escrita rigorosa. E este autor pensa claro e escreve claro. Por exemplo, sobre as impressões da sua vida interior e exterior. Os seus escritos, com marcas de oralidade, propõem reflexões que são emoções e emoções que são reflexões. Eis um escritor de pormenores (patente nas inúmeras “Notas ao texto”), bem apetrechado em termos teóricos, com capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar, e que incorpora nos seus discursos os métodos e as preocupações dos mais diversos ramos da ensaística e da investigação.

Sabendo-se que, à boa maneira empirista, as ideias chegam a nós pela experiência, temos que Onésimo sabe do que fala e fala sobre o que sabe e conhece, ele que vive e escreve em permanente desassossego criativo. Da sua vivência de quatro décadas em terras americanas, da assimilação de duas culturas diferentes, ele faz, com grande lucidez, uma série de reflexões filosóficas, observações sociológicas, apreciações literárias e retira conclusões, reinterpretando e reinventando, através de uma escrita errática, os temas que lhe são particularmente caros: a experiência da diáspora, a identidade, assimilação e aculturação dos portugueses inseridos nas comunidades norte-americanas; a “cultura hifenada”; as evocações dos incontornáveis Jorge de Sena e José Rodrigues Miguéis; a revisitação dos tempos pós revolucionários de Abril; as (íntimas) mundividências; os olhares (críticos e minuciosos) sobre a história e literatura luso-americanas, etc.

Se o pensamento de Onésimo é profundamente português, a sua metodologia de análise é estruturalmente anglo-saxónica. Quero com isto dizer que este autor não é dos que usam palavras a mais para esconder ideias a menos. Bem pelo contrário: sem flores na lapela nem brincos semióticos, ele dá forma e expressão ao que sente e pensa, sem aparatos académicos, esquivando-se a hermenêuticas e a considerações excessivamente teóricas, escrevendo num português vivo e escorreito, em estilo limpo, de grande elegância lexical, e com uma muito bem conseguida articulação de ideias.

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A emigração no fiel da balança
por Nuno A. Vieira in Portuguese Times

Na ópera Nabucco, Joseph Verdi põe em pauta o lamento dos escravos hebreus, nas margens do rio Eufrates, ao relembrarem a sua pátria – “vai pensamento sobre as ‘asas douradas’”. É só em sonho que José Luís Borges, no conto El Otro, consegue aceitar o encontro do velho com o jovem – que são ele próprio – respectivamente em Cambridge, no estado de Massachusetts, no ano de 1969 e em Genebra, na data de 1914. Domingos Rebelo, no seu quadro Os Emigrantes e Tomáz Vieira, em Os Regressantes, recorrem à pintura para expressarem o espaço de aculturação entre a partida e a chegada. Agora, o Professor Onésimo Teotónio Almeida quantifica esse espaço na publicação do seu livro O Peso do Hífen.
O autor reúne, em volume, ensaios que têm como base quase quarenta anos de América. Trata-se da experiência luso-americana nas ‹‹comunidades›› norte-americanas. O escritor constata diferentes valores do peso: “O peso do hífen tem sido para mim mais do que sustentável. Leve, direi mesmo. Diferentemente hão-de sentir muitos dos meus patrícios. O peso para esses está exactamente no facto de não lhes ser possível libertarem-se mais do hífen...” (p. 14).

Onésimo Almeida, quando entra no domínio da filosofia, frequentemente fala da verdade como algo poliédrico. Neste seu livro – O Peso do Hífen – Ensaios sobre a experiência luso-americana - a vivência do emigrante aparece também multifacetada e quantificada em diferentes unidades. O escritor ultrapassa os limites da sua atenta observação pessoal e baseia-se numa bibliografia que incorpora 76 páginas de citações. Será necessariamente, para sempre, um livro de referência em matéria de emigração.

Onésimo, numa perspetiva histórica, identifica os primeiros homens que terão pisado solo na América do Norte – Estevam Gomez, nas costas do Maine, em 1525; João Alvarez Fagundes, na Terra Nova, em 1520 e o seu irmão Gaspar terá também aportado à Terra Nova antes de 1500. A seguir, o autor faz uma cronologia minuciosa do movimento açoriano emigratório e demais espaço português, indicando as terras de origem e pontos de destino das diferentes ondas de emigração, registando, ainda, as coordenadas histórico-económicas que provocaram tal êxodo. A geografia do destino parece tornar-se uma extensão do território português com localidades como: Martha’s Vineyard, Provincetown, Cape Cod, Fall River, New Bedford, Taunton, Lowell, Lawrence, Gloucester, Pawtucket, Providence, New York, Newark, Vales de San Joaquín, San Fernando e Santa Clara. A lista poderia continuar.

Os quatro períodos em que Onésimo divide a integração do imigrante nos Estados Unidos revelam diferentes valores do peso do hífen. Passarei a parafrasear o autor: No período anterior a 1965, o emigrante dissolve-se quase por completo no imenso caldeirão norte-americano, deles quase não restando o sobrenome. No período de 1965 a finais da década de 1980, propõe-se a substituição do melting pot pela conceção pluralista da salada em que os componentes da mesma manteriam as suas características. No período que se segue aos anos de 1980, dá-se uma desaceleração da euforia étnica da época anterior. O brio étnico ganha confiança, as comunidades envelhecem, os média portugueses têm menos apoio económico, assim como, também, menos leitores. O desinteresse pela política portuguesa é substituído por um maior grau de envolvimento na política local. A naturalização americana aumenta e mais portugueses tomam cargos políticos. Os filhos de emigrantes que completam cursos universitários e ocupam posições de relevo alcançam um número nunca visto. As divisões bairristas quase desaparecem. Gera-se uma espécie de estabilidade no seio das comunidades que no meio americano são reconhecidas pela sua aderência à ordem pública.

Nas décadas seguintes, o autor aponta duas direções na consolidação da L(usa)lândia: uma americanização contínua e progressiva, o que significa ‹‹desportugalização›› e a intensificação dos meios de comunicação, o que possibilita o contacto entre as comunidades luso americanas em áreas de interesse comum. Assim, continua o pensador: “O dilema do imigrante é: sair do ninho linguístico e cultural materno ou aventurar-se para além dele”. (p. 31). Prossegue: “Para muitos jovens, singrar no meio americano tem sido a consequência dum corte com a cultura portuguesa”, (p. 31). Mais adiante, “O mundo da L(usa)lândia é tão diferente do americano como o é do português”. (p. 35).

O professor Onésimo menciona três fatores que poderão afetar a consistência desse traço de união chamado hífen. São eles: um limitado domínio da segunda língua, o grau de instrução prévia e a idade inicial do imigrante (É o caso de Laurinda de Andrade que “partiu jovem da sua Terceira para os Estados Unidos e por isso se integrou bem”, p. 161). Dessa sorte, as citações autorizadas dos seguintes autores poderão estar sujeitas a interpretações de diferente peso e tonalidade: Vitorino Nemésio, em relação ao emigrante terceirense (ou, mutatis mutandis, outro qualquer) escreve: “O emigrante não pode estrangeirar-se: no fundo ficou o que era”, (p. 41). William Faulkner: “todo o homem é a soma do seu passado”. (p. 53). Finalmente, Tom Wolf: “you can’t go home again”, (p. 65).

O autor aproxima-nos da voz de alguns dos muitos distintos escritores (exilados, ou asilados? [sic]) das letras lusas da diáspora. José Rodrigues Miguéis refere-se à “dupla ligação afetiva que foi desenvolvendo com dois países”. (p. 155). Jorge de Sena fala de escritores portugueses que “carregaram às costas o fardo mais ou menos pesado da pátria”. (p. 157). Onésimo comenta desta forma os seguintes dois autores: De José Martins, escreve: “O sarcasmo era a resposta às mágoas que acumulou por onde foi passando”. (p. 159). A seguir: “A escrita de Eduardo Pinto não deixa de registar a dureza, a amargura, a melancolia pela perda do chão...”, (p. 162). O autor conclui: “Cada um a seu modo... resolveu o problema do exílio e da inultrapassável distância da pátria, conforme as circunstâncias... (que) ... constituíram parte do seu eu”. (p. 165).

No livro O Peso do Hífen ouve-se a voz de académicos, pensadores, historiadores, sociólogos, escritores, jornalistas, especialistas em diferentes áreas e a do povo. O autor leva o leitor à casa de cores garridas e ao jardim do emigrante português; nesse, observa-lhe a simetria, os altares, as estátuas e as latadas; cheira-lhe o aroma das flores e saboreia-lhes as hortaliças que originaram o seguinte provérbio em Rhode Island e Massachusetts: “Se queres ver uma batata crescer, fala-lhe português”; (p. 89). Nessa publicação, lê-se acerca de mitos e factos dos Irmãos Corte Real. Revisita-se a Pedra de Dighton. Nomeiam-se comunidades e figuras de destaque e sucesso no mundo luso-americano.

No capítulo Três décadas de literatura luso-americana: um balanço (1970-2010), Onésimo Almeida põe em relevo o património literário da experiência luso-americana. Referindo-se ao livro Guiomar de Caetano Valadão Serpa, publicado em 1990, diz: “Os subtítulos dos capítulos da narrativa descrevem claramente o conteúdo do livro, mas são também um bom resumo da problemática de toda a literatura que estamos a tratar: ‹‹[...] Decisão de partir – Regresso às ilhas – Retorno às Américas – Sonho e realidade.››. Desse período da literatura, Onésimo faz uma longa listagem dos escritores e das suas obras, quer em poesia, quer em prosa: o conto, a crónica, o ensaio, a narrativa, o romance, a escrita memorialista e traduções de obras de autores luso-americanos.
Desde sempre, a nossa gente gozou de boa reputação na opinião pública. Já a meados do século XIX, Charles Nofdhof ao referir-se aos nossos baleeiros, traçou-lhes o seguinte perfil: “São gente calma, pacífica, inofensiva, sóbria e industriosa... São tidos em grande estima pelos armadores e capitães.”(p. 22). Mais tarde, em 1942, numa polémica que se levantou em Provincetown, Mary Heaton Vorse escreveu um artigo intitulado ‹‹The Portuguese of Provincetown››, no qual em referência à gente das ilhas apregoa: “As dádivas que trouxeram para este país são incalculáveis”. (p. 132). A qualidade e ética de trabalho do nosso trabalhador mereceram elogios contínuos.

É verdade que há situações de peso. Veja-se, por exemplo, o testemunho de Helen Benedict, no seu livro Virgin or Tramp, publicado em 1992, a propósito do famigerado caso Big Dan’s: “Como resultado, o Big Dan’s não será esquecido. Revelou o cru avesso da sociedade americana – o conflito entre homens e mulheres, a suspeita generalizada em relação às vítimas, e o ódio recíproco entre americanos instalados e os que são vistos como estrangeiros, classe baixa, não-brancos, ou ‹‹o outro›› – e revelou a forma como estes elementos podem seduzir e enviesar a imprensa. (p. 262).

Para além de situações de peso, pode haver as de confusão pessoal. Joseph Pap, em livro de Lawrence Livine, diz: “O meu pai era judeu polaco, eu sou judeu americano ou sou americano judeu, seja qual for a maneira de dizê-lo. Às vezes sou apenas judeu. Mas nunca sou apenas americano”. (p. 203).

Penso que é em todo esse contexto que Onésimo escreve: “Nada disto é, porém, um lamento, apenas uma descrição que se pretende realista, com os factos a saltarem de todos os lados em seu socorro. E as exceções parecem suficientes para se considerar injusta a lamúria pura e simples”. (pp. 201-202). Será assim que o fiel da balança poderá oscilar na vida do emigrante.



quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Contos com Desconto, de Álamo Oliveira


ÁLAMO OLIVEIRA
CONTOS COM DESCONTO
Col. Ínsula – Nova Série
Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura, 1991

O livro de Álamo Oliveira, Contos com Desconto, é um exemplo de como essa espécie narrativa anda cada vez mais comprometida com outras. O conto sempre adoptou muitas máscaras, sendo que a mais comum e com a qual se confunde frequentemente é a da crónica. Na verdade, estamos diante de algo que se confunde com o conto-crónica, mas que mais se aproxima co conto-relato. Talvez por isso o título do livro já anuncia que devemos dar um certo desconto às histórias reunidas no volume. Justamente – temos que dar um grande desconto, pois não sabemos até onde vai o relato e onde fica o conto, onde está a realidade insular, isto é, do arquipélago açoriano, e onde germina a fantasia do escritor. Tanto é assim que os títulos que identificam os textos pouco ou nada têm a ver com a história contada. As provas desta afirmação acham-se, por exemplo, em «Não É pra Me Gabar» e «A Grafonola».
Os Contos de Álamo Oliveira constroem-se sobre coisas ou sobre acontecimentos, geralmente pitorescos, da vida e dos lugares açorianos. São relatos ou historietas enriquecidos pelo humor e a visão do mundo do Autor, que lhes empresta comicidade e realismo, num discurso marcado pela presença das ilhas, o que confere peculiaridade ao estilo do escritor. Também as gentes açorianas comparecem, com seu perfil inconfundível, sua interpretação ingénua de um universo aprisionado («O Coreto» e «Por Um Punhado de Espírito Santo»).
Uma surpresa aguarda o leitor no último texto do livro de Álamo Oliveira: o conto «Cinco Escudos». Este, sim
, perfeito sob todos os aspectos, de uma intensa artisticidade, com uma estrutura narrativa impecável. Um conto que vale o livro inteiro.
De qualquer forma, mesmo com o «desconto» de que fala o Autor, estes relatos, crónicas ou contos são a palavra das ilhas, e têm uma garantia de que não podemos duvidar.

Fernando Mendonça in Colóquio Letras n.º 134, outubro de 1994, pp. 155-156

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Mónica Cabral, Os contos de Álamo Oliveira, forma breve 1, 2003, p. 163-178

Doutoranda
Universidade de Aveiro

Resumo: Este texto apresenta, num primeiro momento, os aspectos principais dos contos de Álamo Oliveira. Segue-se um breve esboço histórico-literário do conto de temática açoriana e, finalmente, uma visão mais detalhada dos contos deste escritor em que essa temática está presente.




Ilha Grande Fechada, de Daniel de Sá


     Daniel de Sá, Ilha grande fechada, 2ª., Ponta Delgada, Ver Açor, 2010

     Este livro, de Daniel de Sá, fez parte da lista de obras de leitura obrigatória para a Fase Regional do Concurso Nacional de Leitura, do ensino secundário, na Região Autónoma dos Açores, que decorreu no passado dia 26 de abril, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
     A obra encontra-se organizada sob a égide de várias referências culturais marcantes no universo do povo açoriano e universal.  Na «Nota Prévia», é-nos apresentada a interligação entre os segundos títulos ou subtítulos e os respetivos autores, num total de nove elementos, simultaneamente, estruturantes e representativos do conjunto insular que começa em Lugar de massacre, um título de José Martins Garcia, e termina em A Viagem Possível, de Emanuel Félix.   
     Dando «o seu a seu dono», o autor desvenda outros dados inspiradores, como o título selecionado para a obra Ilha grande fechada, partilhado com um quadro do pintor Tomaz Vieira.
       João, o romeiro que inicia este percurso redentor no cumprimento de uma promessa, persegue o sonho da partida, apenas concretizável após completar um percurso circular, um ciclo de salvação que o leve ao tão desejável (quanto impossível!...) desprendimento da terra e do espaço telúrico, “A ilha, toda inteira. Passo a passo há-de João andá-la de ponta a ponta, duzentos e cinquenta quilómetros em redor, cinquenta léguas compridas de cansaços e Ave-Marias.” (p.9).
     O caminho, de martírio e de sacríficio, faz-se paralelamente no espaço e num tempo rememorado que fundamenta a necessidade de alcançar o fim, o propósito que o levou a encetar esta odisseia pessoal e simbólica.
     A vontade de seguir um movimento de partida leva João a analisar as suas raízes mais profundas e a combater os seus “demónios” mais recônditos. Na preparação para essa ausência da ilha, obriga-se a um processo de purificação e de desprendimento total que acaba por não atingir em pleno, “Ah! Maldita terra, Diana! Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela!” (p.132).  O romeiro toma consciência da sua condição de ilhéu, da resistência inevitável do Homem à terra, um destino inexorável que acabará por adquirir contornos mais trágicos com Diana.
     A leitura desta obra leva-nos à descoberta das crenças, da fé, dos rituais religiosos e pagãos que coexistem lado a lado, no crescimento de cada um de nós. Ingredientes que, desde logo, constituem um estímulo para acompanhar este percurso à volta da ilha e ao mundo interior do ser humano.


Paula Cotter Cabral


A força da Literatura Açoriana na voz de Daniel de Sá
por Augusto de Abreu (Academia São José de Letras) e Cristina Vianna
(Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses)


(…)
      Através do personagem protagonista de Ilha Grande Fechada, o romeiro João apresentou-me uma ilha de penitências e de sacrifícios a serem compensados pelo esforço da tradicional romaria da quaresma. João, que retornara de uma guerra que não era dele, agora enfrentava os seus próprios inimigos internos: parecia-lhe que, passando a pão e água, com os pés feridos e a alma sulcada já pela saudade, a sua emigração para a América apagaria os anos de luta infrutífera que tivera na sua terra natal. Os costumes de seu povo, as suas inquietudes, as riquezas da sua cultura açoriana, os entes queridos e os desafetos ficariam agora numa outra dimensão. Cheguei mesmo a sofrer no peregrinar obsessivo de João, por alcançar o lugar que o levaria para fora da ilha, onde, pensava ele, encontraria a si próprio.
      Comecei, então, a sair do livro, a construir o autor, que se apresentava a mim, através da sua literatura, numa contextualidade contemporânea, mas que discutia os conflitos atemporais do homem sem perder seus valores íntimos, conservando, sobretudo, a ética de nossos ancestrais.
      Era ficção e, no meu pensamento, não poderia haver distanciamento entre o autor e seus personagens. A despeito de toda a teoria literária, eu sentia a presença do escritor que também sofria. Via-o criando suas histórias o mais próximo da realidade a que a ficção pode chegar e reconhecia nesse ato o seu desprendimento em relação à sua própria condição humana. Seus personagens, por mais trágicos que sejam, não são julgados, e o leitor mesmo, conduzido pelo narrador, não reage contra a atitude desses personagens. Aceita-os. Compreende-os. Mesmo assim, em toda a obra, embutida nas entrelinhas subjaz uma constante defesa da moral, do caráter e da dignidade de quem os vive e os cria. E aí, senti-me, eu mesma, um personagem.
      Os trágicos (e tão possíveis) fins dos contos e novelas de Daniel de Sá nos prendem a alma. O caminhar simples de uma vida cotidiana, verosímil, capaz de ser vivida por qualquer mortal, nos aproxima, em igual nível, dos seus personagens, que não são heróis do ponto de vista clássico, mas heróis pela sua condição humana. Em Ilha Grande Fechada, num gesto definitivo, o protagonista sacrifica sua cadela, a fim de não deixar afetos na ilha, numa tentativa, quase à beira da loucura, do gesto extremo que lhe permitiria partir, com remorsos sim, mas com a certeza de que ninguém, nem mesmo um animal, sofresse a dor da distância.   O que ele não sabia era que a pior maneira de continuar na ilha era saindo dela, como afirmava o autor nas palavras do narrador.
      Era um modo de viver Ilhéu. Era, provavelmente, o dilema atroz que perturba quem almeja partir. Uma reprodução (quase) fiel dos usos e dos costumes e do sentir açoriano que se martiriza em todas as vésperas. Registro minucioso, quase documental. Passou-me que essas histórias construídas pela imaginação fundamentavam-se nas lembranças e registros do autor. Seria a realidade o alicerce da sua ficção?
(…)

in Cadernos Açorianos, Suplemento 2 MARÇO 2010, DEDICADO A DANIEL DE SÁ

Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Dez Regressos, de Nuno Costa Santos


Dez Regressos na criação literária de Nuno Costa Santos: uma outra visão
por Claudia Keenan Gelb



RESUMO
Este artigo visa defender a ideia de que a obra Dez regressos, de Nuno Costa Santos, é um romance e não um livro de contos como aparenta ser à primeira vista. Dez regressos é de um gênero híbrido, em que as fronteiras são muito tênues, o que é cada vez mais recorrente na literatura produzida nos dias de hoje. E também porque, como no romance, não é o desfecho que interessa, e sim todo o percurso dos acontecimentos, deixam-se em aberto as diversas possibilidades de leitura que essa obra provoca.

CONTEÚDO
(...)
Nuno Costa Santos  escolheu como pano de fundo as  mazelas  sofridas  pelo ser  humano no dia-a-dia. As
personagens do livro têm problemas (ou conflitos) diferentes, mas todas procuram, muitas vezes em desespero, o amor e a felicidade. A temática da busca (ou regresso) por momentos afortunados, em que a existência não era um fardo e um eterno arrastar de correntes, pauta cada uma das ações dos tipos apresentados no romance, questão a qual também aludiram Henry James (5) (1995) e Todorov (6) (1970). Desiludidos, eles estão sempre a ir ao encontro de alguém muito especial, como se essa perseguição implacável fosse a redenção final.
(...)

para continuar a ler aqui Dez regressos na criação literária de Nuno Costa Santos: uma outra visão


O Terceiro Servo, de Joel Neto


O Terceiro Servo
ROMANCE, Editorial Presença, 2000



in Joel Neto - Crónicas

Miguel Barcelos, jornalista nascido nos Açores no ano da Revolução de Abril, lê num jornal a notícia do assassinato de um velho amigo. Decidido a investigar o sucedido, parte para os Açores. A viagem no espaço é também uma viagem no tempo: um longo percurso de confrontação interior. Entre a recordação das relações entre ele e o morto e as divagações sobre si próprio, Miguel confronta Açores e Lisboa, a cidade onde vive na convicção de que triunfou. Mas outras questões se interpõem. Amor, relações sociais, pedofilia, o fim do milénio, a revolução, o futebol, a economia e até mesmo a fúria dos elementos naturais – tudo se mistura, abalando profundamente as convicções do protagonista. No fim, Miguel opta pelo cómodo caminho da ignorância. À semelhança do terceiro servo da parábola bíblica, prefere fechar os olhos ao desafio que a vida lhe lançou em nome de uma estabilidade falsa mas imediata. Afinal, o jornalismo é o máximo a que pode ambicionar, o que já por si implica a soma possível de toda a sabedoria e de toda a ignorância do mundo – e sobretudo uma visão desdenhosa sobre o lado superficial das coisas, num impulso de síntese enganador mas assumido.


quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Que paisagem apagarás, de Urbano Bettencourt


Que paisagem apagarás,
     de Urbano Bettencourt 

por Victor Rui Dores in Faial Online15 de setembro de 2010



     Urbano Bettencourt é o rigor e a busca incessante da palavra exacta e essencial. Poeta, filólogo, professor, ensaísta (especialista em literaturas insulares), criador literário, homem de pensamento, este picaroto habita a palavra e é por ela habitado – na perspectiva nemesiana de quem, leccionando e escrevendo, se desfaz em linguagem.

     O seu último livro, Que paisagem apagarás (Publiçor, Ponta Delgada, 2010), que reúne vários textos dispersos por diferentes publicações, alguns em suporte electrónico, ao lado de outros ainda inéditos, é um verdadeiro deleite intelectual.
     Atravessadas por um sopro poético, estamos perante um conjunto de narrativas que transfiguram a realidade pelo toque da ficção, balançando entre o real e o imaginário. Temos descrições que são evocações e que tanto se soltam na dinâmica dispersiva da viagem, como se prendem à ilha – a real e a sonhada.

     Cronista de jornadas, o narrador assume, desde logo, a dupla condição de residente e viajante que, atenta e argutamente observa, reflecte e ironiza o real. Não se trata, porém, de uma viagem que se aventura para longe, ao encontro do Outro e do diverso, isto é, não é uma viagem em espiral segundo a expressão emblemática de Xavier de Maistre, Voyage autour de ma Chambre, nem as Viagens garrettianas são para aqui chamadas.

     Em tempo de “globalização galopante”, Que paisagem apagarás impõe-se como expressão da viagem pela literatura, já que esta é uma escrita marcada pela afectividade que resulta de experiências vividas, sentidas e sonhadas pelo seu autor. Acima de tudo, reflexão sobre a condição humana e viagem pela memória – por exemplo, a memória (magoadíssima) da Guerra Colonial.

     A depuração passa aqui por uma negação do acessório, do ornamento, da retórica. “Noite” e “Antes da noite” são duas narrativas de excelência literária. O texto “O comboio inexistente”, mais desenvolvido, daria uma bela peça de teatro. E há este dado surpreendente: em vários momentos surge-nos um tal Ernesto Gregório, interposto narrador, a funcionar como uma espécie de alter-ego do autor.

     Mas a cereja em cima do bolo está na segunda parte do livro: “Breves, brevíssimas e (des)aforismos”. Em curtíssimos e apetecíveis textos, eivados de humor, escárnio e maldizer, o autor lança olhares sarcásticos a uma certa mundividência social, cultural e literária.
     Por conseguinte, estamos na presença de um Urbano Bettencourt no seu melhor, isto é, na sua fase mais experimentada, consistente, criativa e fecunda.

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Breve apontamento sobre “Que Paisagem Apagarás” 
de Urbano Bettencourt

por Eduardo Bettencourt Pinto in Palavras no branco, 12 de outubro de 2010


Ocorre-me uma manhã luminosa no Funchal há uns anos atrás. À mesa do pequeno-almoço estavam  o Urbano Bettencourt,  o Miguel Moniz e eu. O sol, que parecia brotar das profundezas do mar, tocava os vidros da sala com um esplendor surreal. Era um relâmpago cristalino a banhar-se devagar nos copos de sumo de laranja. Descansava, enfim, em delícias mornas, no branco muito alvo da toalha de mesa.

A manhã era bela como são, aliás, todas as manhãs sob a pacificação dos lugares onde reverbera a poesia. A água azul da distância levava um barco, muito lentamente, num rumo de luz.

As vozes e os rostos dos nossos afectos fazem de um deserto um espaço habitável. Se estamos, como naquele momento, perante a sublimidade, então a circunstância de uma euforia ganha o perfil de um postal ou de um quadro de ressonâncias indeléveis.

Esta associação de ideias e memórias ocorreu-me enquanto lia o mais recente livro de Urbano Bettencourt, Que Paisagem Apagarás. Estaquei ante esta passagem:

“E dei comigo a pensar como será bom saber que, de cada vez que sucumbirmos ao íntimo chamamento do mar, uma voz de mulher há-de erguer-se para chorar-nos o destino e a perdição.”

Há, no conjunto dos textos que permeiam as suas páginas (desde a ficção à nota de viagem, por exemplo) uma harmoniosa hibridez de géneros literários. A leitura reparte-se por vários registos, é certo. No entanto, não se antagonizam; perfilam-se numa unidade exemplar que salienta o cuidado com que o autor pôs na sua organização. Não obstante os seus contornos próprios, os textos revelam um vector comum naquilo que é a marca inconfundível da mais do que afirmada escrita de UB: o estilo sóbrio e rigoroso. Na sua reverberação semântica encontramos segurança, finura no estilo,  e um perfil intelectual abrangente, tangível e coeso.

O devir inequívoco da sua mecânica criativa resulta em textos depurados, poéticos em certos momentos, e em cujo vínculo descobrimos ironia, humor, subtileza e elegância. E, derradeiramente, a sua emocionada humanidade.

Este título de Urbano Bettencourt, que se apresenta como um novo marco na sua já extensa bibliografia (poesia, narrativa e ensaio), revela um ficcionista de primeira água. Atente-se, por exemplo, neste diálogo entre Antero de Quental e Del Giudice no conto O comboio inexistente:

“ – Vou à procura de uma mulher que saiu de casa atrás de um verso de treze sílabas  – declarou Del Giudice, enquanto tentava surpreender no rosto do outro o efeito dessa confissão.
– Não creio que seja uma boa razão para viajar.
– A da mulher ou a minha?
– A sua. Perseguir um verso pode ser um projecto de vida, mesmo que se trate de um verso funesto. Mas lançar-se no encalço de uma mulher por causa disso já me parece uma intriga de novela de mistério.”

Perante a mestria narrativa patenteada neste novo título de Urbano Bettencourt, fica no ar esta pergunta e este desejo: Para quando um romance? Que Paisagem Apagarás é um livro delicioso que nos proporciona grandes momentos de prazer, nos comove, deslumbra e entretém.


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notas de apresentação de QUE PAISAGEM APAGARÁS, de Urbano Bettencourt

por Carlos Alberto Machado

São Roque do Pico, 30 de Julho de 2010

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Paisagens da memória: sobre o livro
Que paisagem apagarás, de Urbano Bettencourt

por Luiz Antonio de Assis Brasil, 2011




quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Almas Cativas, de Roberto de Mesquita

Almas Cativas e Poemas Dispersos de Roberto de Mesquita por Carla Cook in Notebook, 6 de julho de 2011.



A primeira vez que “Almas Cativas” foi editado, em 1931, já o seu autor falecera. Essa edição de parcos exemplares não chamou a atenção até que, oitos anos depois, Vitorino Nemésio escreveu sobre ela, considerando que a poesia de Roberto de Mesquita era o que de mais profundamente simbolizava o sentir açoriano. Depois desta primeira análise, os mais conhecidos críticos da Literatura Portuguesa interessaram-se pelo livro único, vendo em Roberto de Mesquita a expressão do Simbolismo – a descrição saudosa, o pessimismo reflexivo, um sentimento de abandono, a animização da Natureza, o spleen envolto em mágoa e, sobretudo, o isolamento. O próprio Nemésio voltaria, mais tarde, a concentrar-se neste último aspecto num ensaio hoje quase mítico sobre a poesia de Roberto de Mesquita, onde o eleva à mais pura expressão do íntimo da açorianidade. É o isolamento que define a condição de ser açoriano; nesta e por esta circunstância, todo o seu íntimo se torna ilha, à semelhança do exterior que o rodeia.
Roberto de Mesquita (1871-1923) nasceu e morreu em Santa Cruz das Flores, já de si um local isolado. Foi o último filho do segundo casamento do seu pai e, como tal, viu logradas as hipóteses de prosseguir estudos, apesar do pai pertencer à baixa aristocracia. Só saiu dos Açores uma única vez na vida (em 1904), para visitar o irmão, que era professor em Coimbra e Viseu. Exerceu cargos de funcionário público em algumas das ilhas dos Açores e tinha ligações ao Partido Republicano. A sua carreira regular foi abalada por um escândalo de dívidas familiares. Profundamente abalado pela morte da mãe, mais sentiu acentuar-se o seu carácter melancólico e reservado. Rompeu o noivado com o seu amor de sempre (que, no entanto, não deixou de amar) e fez um casamento de conveniência que manteve por ser de bom tom com uma senhora de quem sempre se sentiu distante. Diz-se que morreu atacado de delírios e que ainda recitava versos no seu último estado febril.
Carla Cook


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ROBERTO DE MESQUITA E O “ELOGIO DA SOLIDÃO”
UMA LEITURA DE ALMAS CATIVAS
por Maria Natália Gomes Thimóteo
Doutora - UNICENTRO – PR
O ensaio pode ser consultado aqui

Pedras Negras, de Dias de Melo


Texto de Victor Rui Dores publicado no boletim n.º 13, 2004, do Núcleo Cultural da Horta.


Dias de Melo
Pedras Negras

Lisboa, Salamandra
38ª edição, 2003



Vinde, vede e lede Dias de Melo, escritor, 78 anos de idade e 50 de vida literária, homem solidário, solitário e fraterno, viciado na escrita e no cachimbo, picaroto da Calheta de Nesquim, baleeiro da literatura açoriana.

Do recolhido silêncio do Alto da Rocha do Canto da Baía, continua este autor a aguentar o rumo da escrita, num percurso literário cujo universo temático consubstancia à sua volta a distância, a ausência, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita de funda expressão humana e universal.

Dias de Melo continua a escrever e a surpreender, ele que fez da ilha do Pico e dos picarotos a matéria prima dos 27 livros que até à data publicou, em diversos registos e diversificados géneros literários: a poesia, a narrativa, o conto, a novela, o romance, a crónica, a monografia, a dissertação didáctico-pedagógica e o estudo etnográfico. Em toda a sua obra, este autor, sem nunca fazer concessões a modas literárias, conta-nos histórias dos homens do mar e da terra, gente de grande riqueza psicológica.

Conhecendo de perto a actividade baleeira e olhando-a e sentindo-a como coisa sua, Dias de Melo (ele próprio baleeiro esporadicamente) fez de grande parte da sua escrita um painel dessa mesma actividade, muito particularmente da que se reporta ao concelho das Lajes. Foi ele que deu à literatura portuguesa um testemunho empolgante e vigoroso sobre a história anónima e colectiva dos baleeiros do Pico, captando a verdadeira dimensão humana, social e dramática dessa epopeia marítima, sobretudo nos livros que constituem aquilo a que Santos Barros chamou “trilogia da baleia”: Mar Rubro (1958), Pedras Negras (1964) e Mar pela Proa (1976).

Pedras Negras passa por ser (e é) o livro mais emblemático de Dias de Melo, cuja 3a edição acaba de ser dada à estampa (Salamandra, 2003). Recorde-se que a primeira edição data de 1964 (Portugália Editora) e a segunda de 1985 (Editorial Veja), havendo desta obra uma edição em inglês: Dark Stones (Providence, Gávea Brown Publications, 1988), com notável tradução de Gregory McNab.

Escrito com sóbria mestria narrativa e arquitectado sobre a problemática da emigração, Pedras Negras é percorrido por uma profunda açorianidade, em que terras e gentes nos transmitem uma impressão de vida áspera, de solidão insulada, onde a luta pela dignidade é uma constante e a sobrevivência se ganha a pulso. A acção decorre entre os princípios do século XX até finais da Segunda Guerra Mundial. A personagem central é Francisco Marroco que, aos 16 anos de idade, desafia a ilha e foge de salto na baleeira “Queen of the Seas”, com os olhos postos na América... Só lá chegará três anos depois, tendo percorrido os mares de todo o mundo à caça da baleia, ele que encontrou na errância a sua forma de perseguir a felicidade e o sonho. Após ter conhecido a vida dura em terras americanas, Francisco Marroco regressa à ilha do Pico e é esmagado por essa mesma ilha, após o fugaz intervalo de uma felicidade passageira e ilusória, em que conheceu o estatuto de “senhor americano”...

Este é um livro que não envelheceu e continua a emocionar e a surpreender.

Victor Rui Dores

O Menino Perdido, de Susana Teles Margarido


Brites Araújo, no Correio dos Açores do dia 9 de novembro de 2008, publicou uma recensão sobre "O Menino Perdido", de Susana Teles Margarido, a qual pode ser lida aqui.


Era uma vez uma ilha muito verde, erguida no meio de um oceano muito azul.

É desta forma que tem início a história que Susana Teles Margarido nos conta n’O Menino Perdido, o seu mais recente livro para crianças, apresentado aos leitores de Ponta Delgada, nas suas versões portuguesa e inglesa, no passado dia 31 de Outubro.

E “Era uma vez…” é tudo o que basta para que a memória corra a recuperar esse outro tempo em que, ansiosos, esperávamos o ritual do conto, ou a viagem deliciosamente solitária da sua leitura. Nesses momentos de encantamento, em que fazíamos silêncio, ou nos “sozinhávamos” (como diria Mia Couto) para melhor nos enchermos de maravilhoso e de fantástico, redimensionávamos a nossa própria geografia e o mundo já não cabia à nossa volta. A leitura e/ou a narrativa tinham a capacidade de o estender para além dos seus limites conhecidos, transportando-nos para uma outra dimensão de nós mesmos, e plasmando o que éramos então de forma tão indelével que hoje funcionam como espelho onde buscamos reflexo do que efectivamente somos.

Os mundos maravilhosos e fantásticos que Susana Teles Margarido (re)cria n’O Menino Perdido, como noutros contos infanto-juvenis de que é autora, estão povoados de personagens, situações (a que não tem faltado a viagem iniciática) e criaturas que se inscrevem no imaginário e na tradição da literatura para crianças. Sereias e monstros marinhos, plantas aquáticas com poderes mágicos, animais que falam, reinos submarinos e reinos de gelo, vacas e golfinhos voadores, fadas e duendes, pais-natal para cada mês do ano, são alguns exemplos do fantástico e do maravilhoso que preenchem as obras desta autora.
No entanto, se, por um lado, eles constituem o elemento charneira desses universos literários, por outro, são sempre mediados por um real geográfico que tem nas ilhas dos Açores o seu cais de partida e de regresso. E é neste real geográfico que se cumpre, no caso d’O Menino Perdido, como na obra que o antecedeu (Luna e as Ilhas Fantásticas dos Açores), a função pedagógica dos seus livros. E essa, que é explícita em Luna, ganha n’O Menino Perdido a tonalidade subtil do amor à terra, de um amor que resgata do estigma, da pequenez, do abandono, e nos aponta a necessidade de a inscrevermos no imaginário dos contos para que ela se apresente, aos nossos olhos e aos nossos corações, com o encanto, a magia e a beleza das coisas que guardamos e por que zelamos com carinho.


Assim, a possibilidade de haver sereias a povoar o litoral de Rabo de Peixe, risível na realidade que conhecemos, extrapola do universo fictício d’O Menino Perdido para o real empírico como metáfora do potencial implícito nas coisas à nossa volta: potencial de beleza, de grandiosidade, de inclusão e de pertença. Trata-se, afinal, da possibilidade de, como disse no início, pela literatura, redimensionarmos a nossa própria geografia para que, no fim, aquilo que somos, ou o que fomos sendo, se alargue sempre mais e caiba, por inteiro e por direito, no imenso e maravilhoso universo da Coisa Humana; seja ela tão real e palpável como o cais de Rabo de Peixe, ou tão impalpável, mas nem por isso irrealista, como este menino perdido que a autora trouxe agora a público.

É já um lugar comum afirmar que existe uma criança em cada um de nós, adultos. Não estou certa de que isto possa ser aplicado indiscriminadamente, mas pode-se afirmar que a criança que há uns quantos anos atrás lia e/ou ouvia histórias de encantar, está presente na narradora d’ O Menino Perdido, como nas dos outros contos infantis de que Susana é autora, e que está, sobretudo, presente na forma maravilhada com que nos vai narrando esses mundos tão extraordinários.

E porque nenhuma produção literária digna desse nome menospreza o seu objecto ou o seu leitor, tenha este a idade que tiver, é de toda a justiça referir que a autora, em circunstância alguma, cedeu à voz de falsete, no que esta representa de depreciativo no contexto da literatura infanto-juvenil, demonstrando, desta forma, o respeito e a seriedade que os seus potenciais leitores lhe merecem.

O Menino Perdido leva-nos numa maravilhosa e fantástica viagem submarina a latitudes e a reinos apenas sonhadas, de que as ilustrações de Fedra Santos, artista nortenha cujo currículo inclui a ilustração de autores como Sophia de Mellho Breyner Andresen e Nicolás Guillen, são um complemento pictórico de qualidade assinalável, ao interpretarem não só o imaginário infantil, como a singularidade do espaço geográfico de referência, numa adesão inequívoca ao universo proposto pelo livro.

Susana Teles Margarido convida-nos, então, adultos e crianças, a embarcarmos rumo aos mundos fantásticos do nosso imaginário, convite a que basta responder com a nossa vontade de nos enchermos de infância e com a nossa adesão à senha mágica: “As fadas, eu creio nelas […]”.

Brites Araújo, Correio dos Açores, 9 de novembro de 2008

Arlequim nas ruínas de Lisboa, de Norberto Ávila

ARLEQUIM NAS RUÍNAS DE LISBOA
Comédia de maus costumes



Escrita em 1992 e nesse mesmo ano estreada em Lisboa, no Teatro da Trindade, com encenação de Carlos Cabral, teve por essa altura uma 1ª edição restrita, da Escola Superior de Teatro e Cinema; 2ª edição: Novo Imbondeiro, Lisboa, 2004. Próxima edição: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, numa recolha de 18 peças do autor, em 2 volumes.

OPINIÃO
(de Valentim Lemos, a propósito desta peça): “Num país onde o teatro é olhado com pouco interesse pelo poder e com desconfiança pelo grande público, num país onde a edição teatral é escassa e a produção de peças originais portuguesas é diminuta, Norberto Ávila aceitou o risco da situação de dramaturgo profissional; é um dos únicos, senão o único, dentre os nossos dramaturgos actuais, que o fez. A sua produção dramatúrgica é, por isso, regular, e dessa regularidade resulta uma experiência acrescida, um ‘métier’ que apoia a vontade criativa. As suas peças, cada vez mais solicitadas, encontram um acolhimento caloroso, embora continuem – é mania nacional – a ser melhor conhecidas no estrangeiro que em Portugal.”

SINOPSE
O jovem Alceu Beringela regressa a Lisboa nas vésperas do terramoto de 1755. (Estivera uns anos em Goa, ao serviço do Marquês de Távora, Vice-Rei da Índia. De passagem por Veneza, deixou-se encantar pela commedia dell’arte, e acompanhou mesmo uma companhia itinerante por várias cidades. O seu grande sonho: tornar-se um Arlequim, em Portugal.)
Este nosso Arlequim (cujo fato tradicional o caracteriza) encontra a sua casa ocupada pela madrasta, que ele ainda não conhece. O pai, especialista em falsos testemunhos, está preso no Limoeiro.

Arlequim apaixona-se então por uma jovem vizinha, Marília, a quem ele chama “a sua Colombina” e dedica-se à venda de folhetos de cordel.

Com o sismo do 1º de Novembro, desmoronam-se umas paredes do Limoeiro, e Cornélio Berigela, pai de Arlequim, põe-se a salvo e entrega-se ao saque das nobres residências arruinadas. Como, na sua juventude, Cornélio havia sido titereiro no Teatro do Bairro Alto (de António Josè da Silva), o filho desafia-o a criar uma companhia teatral. Mas o cavalheiro de indústria  não está para aí virado. Prossegue nos seus rapinanços, até que se lhe desmoronam em cima uns escombros do muro do quintal. E não sobrevive.
Com a cumplicidade de Marília, Arlequim surge em casa trasvestido de freira de Odivelas e convence a madrasta (Libertina Vitalícia) a fixar residência no famoso convento. Fica-lhe a casa, portanto, à inteira disposição.

Marília, que entretanto passa a viver com Arlequim,  entra ao serviço de Sebastião de Carvalho e Melo (futuro Marquês de Pombal), a quem pede patrocínio para a tão desejada companhia teatral de Arlequim. E este, como prova do seu talento, decide-se a imitar o jesuíta Gabriel Malagrida, visceral inimigo de Carvalho e Melo. Porém o Ministro não se comove. E tem outras prioridades. Está a reconstruir Lisboa!

Põe-se a hipótese de Arlequim aceitar o patrocínio dos Marqueses de Távora (entretanto regressados à pátria). Mas o ilustre casal vê-se envolvido nas suspeitas de atentado contra  o Rei D. José. E Arlequim, pelo simples facto de ter sido criado dos suspeitos (já condenados à morte), receia continuar em Lisboa. Com Marília, grávida, decide empreender uma romagem a Santiago de Compostela e permanecer no estrangeiro até que os ares em Portugal se tornem mais respiráveis.

Norberto Ávila

Os silos do silêncio, de Eduíno de Jesus

Os Silos do Silêncio, de Eduíno de Jesus, por Carla Cook em Notebook.


Esta antologia pessoal reúne as poesias mais emblemáticas do autor de 1948 a 2004 – meio século de poesia que passeou por tão diferentes caminhos e temáticas que julgamos, por vezes, estar perante diferentes autores. Por isto mesmo, é difícil etiquetar a obra. Na busca de contextualizações, notam-se influências maiores como a do concretismo e a do simbolismo, com alguns traços românticos. Mais fácil é dizer que o autor segue o caminho multifacetado e caleidoscópico da Modernidade.

Redutor também é falar-se de uma obra tematicamente centrífuga, numa poesia que tanto explora, e com o mesmo à vontade na pena e no sentir, a metafísica como o quotidiano nas suas múltiplas vertentes e, entre estes dois pólos, as artes.

Obra não completa de um autor que continua a surpreender, mas, seguramente, condensado mimo poético coligido pelo próprio e com direito a Inéditos. A perspicácia do leitor exige-se.

Eduíno de Jesus nasceu em S. Miguel em 1928. Foi docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, mais tarde (entre 1979 e 2000), regente da cadeira de Teoria de Literatura na Universidade Nova da mesma cidade. Foi um dos directores da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura da Verbo e ainda colaborador da Enciclopédia de Leitura Biblos e do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Embora a sua obra seja mais profícua e conhecida no campo poético, não se limita a este, tendo igualmente publicado artigos, crónicas, contos e drama. Polímata activo, escreve continuamente sobre vários assuntos. É conhecida a sua actividade dinâmica enquanto Presidente da Casa dos Açores em Lisboa entre 2003 e 2009, que lhe valeu o merecido epíteto em livro publicado pelo IAC de “Eduíno de Jesus - A Ca(u)sa dos Açores em Lisboa”.

Carla Cook, in http://notebookcarlacook.blogspot.pt, 19 de maio de 2011


Os Silos do Silêncio, de Eduíno de Jesus, por Luiz Antonio de Assis Brasil.

Nascido em Porto Alegre no ano de 1945, Luiz Antonio de Assis Brasil é um dos mais importantes autores brasileiros de sua geração. Formado em Direito e Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o escritor possui uma vigorosa carreira acadêmica, tendo lecionado disciplinas nas universidades de Sorbonne, Toronto, Leipzig e Açores.

Permanências, de Judite Jorge


Permanências, obra de Judite Jorge, nascida em Pontas Negras na ilha do Pico, venceu o prémio “Nunes da Rosa”, do concurso literário Açores/92, promovido pela, então, Secretaria Regional da Educação e Cultura.
            A escrita relata a vivência circular num tempo e num espaço, representando o conformismo de quem se deixa ficar, mas que anseia por partir. Em algumas das personagens, esta atitude coaduna-se com a bruma de muitos dos dias insulares, com todos os “penares” de quem não tem coragem para dar um passo em frente.
            Por vezes, a inquietude esfumaça o ritmo do ilhéu que ambiciosamente sonha com o bulício dos grandes espaços e das dinâmicas citadinas. O anonimato é criticado, mas simultaneamente desejado por quem se sente analisado ao milímetro e acorrentado ao cerco humano do saber, mais do outro do que de si próprio, como se a vida alheia fosse  notícia de dimensão regional.
            Tantas vezes o pensamento leva a personagem à viagem por outras paragens, no entanto, quantas outras e, possivelmente, mais frequentes, são os regressos ao ponto de partida.
            O paradoxo reside, assim, nesse conflito constante entre a necessidade de libertação e o aconchego da rotina e da segurança do que é acolhedor e já conhecido: “Permanece porque não sabe se existe no mundo esse lugar, entre a luz e a obscuridade, sem qualquer palavra, só a respiração dos corpos e o morno arfar das paredes viradas para dentro, onde tudo se orienta para o centro […]” (p.11).
            As idiossincrasias insulares encontram, nas palavras do narrador, reflexos que se transformam através das emoções e se vivem através dos sentidos. Os cheiros, as vivências, as rotinas pitorescas das figuras e dos lugares rurais, ou talvez da imagem de uma ruralidade citadina… diferenças e semelhanças que não encontram um elemento de separação ou de limite questionável.
            A personagem Júlia (re)conhece todos esses elementos, sente-os e vive as circunstâncias de um tempo específico. A transmissão de saberes, “as frases tiradas dos livros da biblioteca itinerante” (acontecimento marcante na vida de tantos ilhéus, e não só!), a comunicação interpessoal, a que é realizada frente a frente no confronto real das relações humanas, fazem parte do quotidiano de Júlia, numa época em que não se imaginava o espaço virtual senão no sonho, ou numa qualquer aventura de ficção científica.
            O núcleo desta narrativa de vida enaltece a constituição, o crescimento e a descoberta de uma personalidade repleta de convicções, de alguém que sabe o que quer e que luta pelos seus ideais, na procura do seu “norte”.
O mar, esse mar imenso, é metáfora da memória, da viagem e da ambicionada distância para quem é da ilha. Porém, o que será uma ilha para um forasteiro, para um habitante de um continente sem fim? Essa é afinal a grande descoberta de António.
Haverá uma ilha em cada um de nós?

Paula Cotter Cabral

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A cor cíclame e os desertos, de Maria de Fátima Borges


Borges, Maria de Fátima, A cor cíclame e os desertos, Lisboa, Cotovia, 1989, 78 páginas.

                Nesta obra, reúnem-se onze estórias de vida, num caleidoscópio de relações jogado no quotidiano possível da existência humana.
                Com tempo e espaço indefinidos e, por isso, intemporais, o núcleo da ação de cada conto constrói-se a partir de uma linguagem profundamente densa e emocional que encerra o universo da reflexão sobre o papel do ser humano, enquanto elo de ligação, no espaço que ocupa na vida (de alguém) e a sua importância no mundo.
A vivência do tempo cinge-se à linguagem da solidão, criando uma atmosfera de neblina emocional que paira sobre as personagens desta obra: “confundo tudo: o que me disseram com aquilo que vou imaginando que teria acontecido para preencher o tempo que me resta. […] Mas aqui será talvez o meu lugar. É como se, apesar de tudo, esperasse.” (p.56).
As personagens surgem como esboço, primam pela indefinição, facto que, simultaneamente, proporciona uma (possível) identificação inquietante do leitor com as figuras desenhadas nos contos. Neste sentido, a expressividade dos contextos relacionais organiza-se sob a égide da ambiguidade, do conhecimento de si e, sobretudo, da necessidade urgente de encontrar um espaço próprio, uma identidade comum num relacionamento a dois, “queríamos um sítio sem gente, onde não houvesse outras respirações […] pois já nessa altura eu sabia que o dia dos outros são eles que o fazem e o vivem à sua maneira que nada tem a ver com a minha em tempo algum” (p.9).
As figuras femininas prevalecem, neste universo, em personagens como Adelina ou Zurília, num complexo diálogo unilateral que se confunde, diversas vezes, com um solilóquio afetivamente perturbante.
No conto «A estátua», a ação centra-se na busca da identidade da pessoa que deu origem a uma estátua situada no meio da praceta. Dada a inexistência de referências sobre a figura representada, procuram-se respostas que, uma vez encontradas, nos fazem realmente pensar sobre a importância do legado indelével do Homem.
A intemporalidade dos textos constrói-se a partir das figuras aí representadas por serem credíveis pela semelhança com o quotidiano de cada ser humano gregário, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Basta ouvir “as conversas” das personagens, espreitar os seus pensamentos e, certamente, encontraremos uma projeção provável da nossa existência.
Assim, recuperamos, paralelamente, ao longo da obra, um sentido universal do ser pessoa, uma maneira de sentir o outro e representar (em comunhão ou discórdia) os papéis sociais e emocionais que nos são atribuídos por via do livre arbítrio, para além de os que nos são inexoravelmente impostos.


Paula Cotter Cabral

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Lagoa dos Castores, de Francisco Cota Fagundes

 [N. Agualva, Praia da Vitória, ilha Terceira, a 12.4.1944] Emigrou para os Estados Unidos em 1963, depois de, na sua ilha, ter apenas completado a escola primária e recebido dois anos de explicações de inglês. Depois de três anos de trabalho nas vacarias do Vale de San Joaquín na Califórnia, mudou-se para Los Angeles, tendo frequentado o Los Angeles Valley College e posteriormente a Universidade da Califórnia, em Los Angeles, recebendo aí um duplo Bacharelato em Português e Espanhol e depois um Mestrado em Estudos Luso-Brasileiros, seguido de um Doutoramento em 1976, com uma dissertação subordinada ao tema A Lírica de Fernando Pessoa: Quatro Visões do Tempo. Desde essa data lecciona na Universidade de Massachusetts Amherst, onde é Professor Catedrático de Português, leccionando também língua e literatura espanholas.

Francisco Cota Fagundes in enciclopédia açoriana, DRaC


Álamo Oliveira e Daniel de Sá escrevem sobre a obra de Francisco Cota Fagundes, A lagoa dos Castores.


Mar pela Proa, de Dias de Melo

Mar pela Proa, de Dias de Melo

            Ao (re)editar a obra de Dias de Melo, a Ver Açor prestou um inestimável serviço à cultura açoriana, porquanto o autor ocupa um lugar ímpar na literatura marcada pela açorianidade. Não é, porém, Dias de Melo apenas o “cronista” da saga baleeira, como muito vulgarmente se pensa, sequer tão-somente um escritor que legou à posteridade a “alma açoriana” (embora não sejam estas tarefas menores); é um criador de valor maior no contexto da produção literária não só açoriana mas também nacional. Mar pela Proa, de que diz Daniel de Sá ser “talvez a mais extraordinária das obras [de Dias de Melo]”, com “força bastante para se tornar universal”, está agora ao dispor do público numa edição extremamente cuidada, de inegável bom gosto gráfico – e os bons autores merecem boas encadernações, boa divulgação, trabalho em que a Ver Açor se esmerou.
            Mar pela Proa poder-se-á considerar uma novela (ou um curto romance, dadas as suas poucas mais de 150 páginas), cuja “estória” – que se desenvolve em torno, basicamente, de um episódio – não deixa de ter contornos épicos. Dividido em três partes, que por sua vez se subdividem (a Primeira Parte em dois momentos: Estes são os nossos botes e Amarras partidas, a Segunda Parte em três: Rumo perdido, Nesga de céu na cerração e Duas estrela), sendo que a Terceira Parte contém apenas um momento: Chamas reavivadas, o livro tem tanto de regionalista como (parafraseando Daniel de Sá) de universal. Se são da Calheta do Nesquim os homens que se lançam ao mar, orgulhosos da sua Companhia Nova (companhia formada por baleeiros independentes, donos dos seus botes, sem a outro senhor servirem que não ao companheirismo de homens livres), se falam e agem como gente da(s) ilha(s), não deixam de ser de qualquer lugar ou tempo os sentimentos que perpassam a obra. Por outras palavras, o que há de espacial e temporalmente particularizado nos homens ilhéus de Mar pela Proa é concomitantemente universal, pois soube Dias de Melo mostrar num grupo de homens aquilo que define o Homem – os seus desejos, os seus sonhos, a sua força, a sua debilidade, sobretudo o seu sentido de união e de empenho numa tarefa comum.
            Assim, Mar pela Proa assume, na aventura dos baleeiros arrostados com uma tormenta, uma dimensão verdadeiramente épica. Por um lado, temos a considerar o sentimento de pertença a um grupo e o companheirismo na construção de uma “obra” (a Companhia Nova), por outro, é de relevar batalha do(s) homem(ns) frente aos elementos, num esforço desmedido para salvarem a vida – mas também o sonho (as embarcações). A lição épica só a reconhecemos, todavia, no fim, quando António Marroco (o herói que se destaca por ser o que mais agruras enfrenta até vencer o mar) diz acreditar que é possível o recomeço. De facto, tal como acontece em qualquer epopeia, muitos são os reveses com que tem de se confrontar o Homem, – e na epopeia destes baleeiros há momentos de fraqueza, que gera a desunião. Se uma canoa se perdeu – e com ela vidas – foi, é-nos dito explicitamente, porque “as amarras se partiram”. Porém, o herói – no sentido épico – luta e acredita. O herói que é Manuel Marroco.
            Se Mar pela Proa vive essencialmente de um episódio trágico-marítimo, não deixa de fazer incursões na vida pessoal das personagens, conferindo-lhes (maior) humanidade. Assim, surgem analepses frequentes onde são narrados pequenos episódios das “estórias” particulares de alguns dos homens. Também nestas incursões se destaca Manuel Marroco, de cuja vida – sempre de luta e perseverança – ficamos a saber alguns pormenores. Esta personagem comove e alenta, pois de um homem lutador, pelo sonho comandado e pelo amor aos seus se trata. Uma espécie de paradigma do Homem, sem perder, contudo, a sua individualidade de filho da ilha.
            Mas não só pela “estória” narrada, pelo seu valor testemunhal, se destaca Mar pela Proa. Com efeito, Dias de Melo é senhor de um registo discursivo (ou de vários) esteticamente marcante(s). Assente numa narração feita do surpreender de momentos e de um manejamento hábil e natural do discurso directo, a obra flui pela palavra como se esta tivesse o compasso do próprio mar. Os regionalismos do discurso directo, “apanhados” nas falas das personagens, têm, naturalmente, grande interesse etnográfico – mas, muito mais do que isso, é o ritmo do discurso directo que prende o leitor. Uma palavra ou duas, frases inacabadas, uma reflexão atirada ao vento tempestuoso – tudo isto confere uma plasticidade incomum ao texto de Dias de Melo. Feita de uma excelente intersecção entre narração, descrição e diálogo (ou monólogo), a escrita de Dias de Melo poder-se-á considerar impressionista, no sentido em que capta instantes, sugere impressões. Tal escrita assenta num trabalho da palavra cuidado e ao mesmo tempo, diríamos, natural, isto é, aparentemente fácil. Todavia, há no labor da frase curta (por vezes muito curta) de Dias de Melo um virtuosismo digno de reparo. Trata-se de uma prosa moderna por esse tipo de frase, pelos refrões frequentes (as palavras do louco ou do jovem que fica no mar), pela síntese de ideias expressas em palavras densas.
            Por tudo o que foi dito e pelo imenso que ficou por dizer, Mar pela Proa é uma leitura que vivamente se recomenda. Dias de Melo não é, de forma alguma, apenas um escritor nosso. É um excelente artista da palavra.
                                                                                                         
Paula de Sousa Lima