quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Ilha Grande Fechada, de Daniel de Sá


     Daniel de Sá, Ilha grande fechada, 2ª., Ponta Delgada, Ver Açor, 2010

     Este livro, de Daniel de Sá, fez parte da lista de obras de leitura obrigatória para a Fase Regional do Concurso Nacional de Leitura, do ensino secundário, na Região Autónoma dos Açores, que decorreu no passado dia 26 de abril, na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
     A obra encontra-se organizada sob a égide de várias referências culturais marcantes no universo do povo açoriano e universal.  Na «Nota Prévia», é-nos apresentada a interligação entre os segundos títulos ou subtítulos e os respetivos autores, num total de nove elementos, simultaneamente, estruturantes e representativos do conjunto insular que começa em Lugar de massacre, um título de José Martins Garcia, e termina em A Viagem Possível, de Emanuel Félix.   
     Dando «o seu a seu dono», o autor desvenda outros dados inspiradores, como o título selecionado para a obra Ilha grande fechada, partilhado com um quadro do pintor Tomaz Vieira.
       João, o romeiro que inicia este percurso redentor no cumprimento de uma promessa, persegue o sonho da partida, apenas concretizável após completar um percurso circular, um ciclo de salvação que o leve ao tão desejável (quanto impossível!...) desprendimento da terra e do espaço telúrico, “A ilha, toda inteira. Passo a passo há-de João andá-la de ponta a ponta, duzentos e cinquenta quilómetros em redor, cinquenta léguas compridas de cansaços e Ave-Marias.” (p.9).
     O caminho, de martírio e de sacríficio, faz-se paralelamente no espaço e num tempo rememorado que fundamenta a necessidade de alcançar o fim, o propósito que o levou a encetar esta odisseia pessoal e simbólica.
     A vontade de seguir um movimento de partida leva João a analisar as suas raízes mais profundas e a combater os seus “demónios” mais recônditos. Na preparação para essa ausência da ilha, obriga-se a um processo de purificação e de desprendimento total que acaba por não atingir em pleno, “Ah! Maldita terra, Diana! Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela!” (p.132).  O romeiro toma consciência da sua condição de ilhéu, da resistência inevitável do Homem à terra, um destino inexorável que acabará por adquirir contornos mais trágicos com Diana.
     A leitura desta obra leva-nos à descoberta das crenças, da fé, dos rituais religiosos e pagãos que coexistem lado a lado, no crescimento de cada um de nós. Ingredientes que, desde logo, constituem um estímulo para acompanhar este percurso à volta da ilha e ao mundo interior do ser humano.


Paula Cotter Cabral


A força da Literatura Açoriana na voz de Daniel de Sá
por Augusto de Abreu (Academia São José de Letras) e Cristina Vianna
(Associação dos Cronistas, Poetas e Contistas Catarinenses)


(…)
      Através do personagem protagonista de Ilha Grande Fechada, o romeiro João apresentou-me uma ilha de penitências e de sacrifícios a serem compensados pelo esforço da tradicional romaria da quaresma. João, que retornara de uma guerra que não era dele, agora enfrentava os seus próprios inimigos internos: parecia-lhe que, passando a pão e água, com os pés feridos e a alma sulcada já pela saudade, a sua emigração para a América apagaria os anos de luta infrutífera que tivera na sua terra natal. Os costumes de seu povo, as suas inquietudes, as riquezas da sua cultura açoriana, os entes queridos e os desafetos ficariam agora numa outra dimensão. Cheguei mesmo a sofrer no peregrinar obsessivo de João, por alcançar o lugar que o levaria para fora da ilha, onde, pensava ele, encontraria a si próprio.
      Comecei, então, a sair do livro, a construir o autor, que se apresentava a mim, através da sua literatura, numa contextualidade contemporânea, mas que discutia os conflitos atemporais do homem sem perder seus valores íntimos, conservando, sobretudo, a ética de nossos ancestrais.
      Era ficção e, no meu pensamento, não poderia haver distanciamento entre o autor e seus personagens. A despeito de toda a teoria literária, eu sentia a presença do escritor que também sofria. Via-o criando suas histórias o mais próximo da realidade a que a ficção pode chegar e reconhecia nesse ato o seu desprendimento em relação à sua própria condição humana. Seus personagens, por mais trágicos que sejam, não são julgados, e o leitor mesmo, conduzido pelo narrador, não reage contra a atitude desses personagens. Aceita-os. Compreende-os. Mesmo assim, em toda a obra, embutida nas entrelinhas subjaz uma constante defesa da moral, do caráter e da dignidade de quem os vive e os cria. E aí, senti-me, eu mesma, um personagem.
      Os trágicos (e tão possíveis) fins dos contos e novelas de Daniel de Sá nos prendem a alma. O caminhar simples de uma vida cotidiana, verosímil, capaz de ser vivida por qualquer mortal, nos aproxima, em igual nível, dos seus personagens, que não são heróis do ponto de vista clássico, mas heróis pela sua condição humana. Em Ilha Grande Fechada, num gesto definitivo, o protagonista sacrifica sua cadela, a fim de não deixar afetos na ilha, numa tentativa, quase à beira da loucura, do gesto extremo que lhe permitiria partir, com remorsos sim, mas com a certeza de que ninguém, nem mesmo um animal, sofresse a dor da distância.   O que ele não sabia era que a pior maneira de continuar na ilha era saindo dela, como afirmava o autor nas palavras do narrador.
      Era um modo de viver Ilhéu. Era, provavelmente, o dilema atroz que perturba quem almeja partir. Uma reprodução (quase) fiel dos usos e dos costumes e do sentir açoriano que se martiriza em todas as vésperas. Registro minucioso, quase documental. Passou-me que essas histórias construídas pela imaginação fundamentavam-se nas lembranças e registros do autor. Seria a realidade o alicerce da sua ficção?
(…)

in Cadernos Açorianos, Suplemento 2 MARÇO 2010, DEDICADO A DANIEL DE SÁ

Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia


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