quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Almas Cativas, de Roberto de Mesquita

Almas Cativas e Poemas Dispersos de Roberto de Mesquita por Carla Cook in Notebook, 6 de julho de 2011.



A primeira vez que “Almas Cativas” foi editado, em 1931, já o seu autor falecera. Essa edição de parcos exemplares não chamou a atenção até que, oitos anos depois, Vitorino Nemésio escreveu sobre ela, considerando que a poesia de Roberto de Mesquita era o que de mais profundamente simbolizava o sentir açoriano. Depois desta primeira análise, os mais conhecidos críticos da Literatura Portuguesa interessaram-se pelo livro único, vendo em Roberto de Mesquita a expressão do Simbolismo – a descrição saudosa, o pessimismo reflexivo, um sentimento de abandono, a animização da Natureza, o spleen envolto em mágoa e, sobretudo, o isolamento. O próprio Nemésio voltaria, mais tarde, a concentrar-se neste último aspecto num ensaio hoje quase mítico sobre a poesia de Roberto de Mesquita, onde o eleva à mais pura expressão do íntimo da açorianidade. É o isolamento que define a condição de ser açoriano; nesta e por esta circunstância, todo o seu íntimo se torna ilha, à semelhança do exterior que o rodeia.
Roberto de Mesquita (1871-1923) nasceu e morreu em Santa Cruz das Flores, já de si um local isolado. Foi o último filho do segundo casamento do seu pai e, como tal, viu logradas as hipóteses de prosseguir estudos, apesar do pai pertencer à baixa aristocracia. Só saiu dos Açores uma única vez na vida (em 1904), para visitar o irmão, que era professor em Coimbra e Viseu. Exerceu cargos de funcionário público em algumas das ilhas dos Açores e tinha ligações ao Partido Republicano. A sua carreira regular foi abalada por um escândalo de dívidas familiares. Profundamente abalado pela morte da mãe, mais sentiu acentuar-se o seu carácter melancólico e reservado. Rompeu o noivado com o seu amor de sempre (que, no entanto, não deixou de amar) e fez um casamento de conveniência que manteve por ser de bom tom com uma senhora de quem sempre se sentiu distante. Diz-se que morreu atacado de delírios e que ainda recitava versos no seu último estado febril.
Carla Cook


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ROBERTO DE MESQUITA E O “ELOGIO DA SOLIDÃO”
UMA LEITURA DE ALMAS CATIVAS
por Maria Natália Gomes Thimóteo
Doutora - UNICENTRO – PR
O ensaio pode ser consultado aqui

Pedras Negras, de Dias de Melo


Texto de Victor Rui Dores publicado no boletim n.º 13, 2004, do Núcleo Cultural da Horta.


Dias de Melo
Pedras Negras

Lisboa, Salamandra
38ª edição, 2003



Vinde, vede e lede Dias de Melo, escritor, 78 anos de idade e 50 de vida literária, homem solidário, solitário e fraterno, viciado na escrita e no cachimbo, picaroto da Calheta de Nesquim, baleeiro da literatura açoriana.

Do recolhido silêncio do Alto da Rocha do Canto da Baía, continua este autor a aguentar o rumo da escrita, num percurso literário cujo universo temático consubstancia à sua volta a distância, a ausência, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita de funda expressão humana e universal.

Dias de Melo continua a escrever e a surpreender, ele que fez da ilha do Pico e dos picarotos a matéria prima dos 27 livros que até à data publicou, em diversos registos e diversificados géneros literários: a poesia, a narrativa, o conto, a novela, o romance, a crónica, a monografia, a dissertação didáctico-pedagógica e o estudo etnográfico. Em toda a sua obra, este autor, sem nunca fazer concessões a modas literárias, conta-nos histórias dos homens do mar e da terra, gente de grande riqueza psicológica.

Conhecendo de perto a actividade baleeira e olhando-a e sentindo-a como coisa sua, Dias de Melo (ele próprio baleeiro esporadicamente) fez de grande parte da sua escrita um painel dessa mesma actividade, muito particularmente da que se reporta ao concelho das Lajes. Foi ele que deu à literatura portuguesa um testemunho empolgante e vigoroso sobre a história anónima e colectiva dos baleeiros do Pico, captando a verdadeira dimensão humana, social e dramática dessa epopeia marítima, sobretudo nos livros que constituem aquilo a que Santos Barros chamou “trilogia da baleia”: Mar Rubro (1958), Pedras Negras (1964) e Mar pela Proa (1976).

Pedras Negras passa por ser (e é) o livro mais emblemático de Dias de Melo, cuja 3a edição acaba de ser dada à estampa (Salamandra, 2003). Recorde-se que a primeira edição data de 1964 (Portugália Editora) e a segunda de 1985 (Editorial Veja), havendo desta obra uma edição em inglês: Dark Stones (Providence, Gávea Brown Publications, 1988), com notável tradução de Gregory McNab.

Escrito com sóbria mestria narrativa e arquitectado sobre a problemática da emigração, Pedras Negras é percorrido por uma profunda açorianidade, em que terras e gentes nos transmitem uma impressão de vida áspera, de solidão insulada, onde a luta pela dignidade é uma constante e a sobrevivência se ganha a pulso. A acção decorre entre os princípios do século XX até finais da Segunda Guerra Mundial. A personagem central é Francisco Marroco que, aos 16 anos de idade, desafia a ilha e foge de salto na baleeira “Queen of the Seas”, com os olhos postos na América... Só lá chegará três anos depois, tendo percorrido os mares de todo o mundo à caça da baleia, ele que encontrou na errância a sua forma de perseguir a felicidade e o sonho. Após ter conhecido a vida dura em terras americanas, Francisco Marroco regressa à ilha do Pico e é esmagado por essa mesma ilha, após o fugaz intervalo de uma felicidade passageira e ilusória, em que conheceu o estatuto de “senhor americano”...

Este é um livro que não envelheceu e continua a emocionar e a surpreender.

Victor Rui Dores

O Menino Perdido, de Susana Teles Margarido


Brites Araújo, no Correio dos Açores do dia 9 de novembro de 2008, publicou uma recensão sobre "O Menino Perdido", de Susana Teles Margarido, a qual pode ser lida aqui.


Era uma vez uma ilha muito verde, erguida no meio de um oceano muito azul.

É desta forma que tem início a história que Susana Teles Margarido nos conta n’O Menino Perdido, o seu mais recente livro para crianças, apresentado aos leitores de Ponta Delgada, nas suas versões portuguesa e inglesa, no passado dia 31 de Outubro.

E “Era uma vez…” é tudo o que basta para que a memória corra a recuperar esse outro tempo em que, ansiosos, esperávamos o ritual do conto, ou a viagem deliciosamente solitária da sua leitura. Nesses momentos de encantamento, em que fazíamos silêncio, ou nos “sozinhávamos” (como diria Mia Couto) para melhor nos enchermos de maravilhoso e de fantástico, redimensionávamos a nossa própria geografia e o mundo já não cabia à nossa volta. A leitura e/ou a narrativa tinham a capacidade de o estender para além dos seus limites conhecidos, transportando-nos para uma outra dimensão de nós mesmos, e plasmando o que éramos então de forma tão indelével que hoje funcionam como espelho onde buscamos reflexo do que efectivamente somos.

Os mundos maravilhosos e fantásticos que Susana Teles Margarido (re)cria n’O Menino Perdido, como noutros contos infanto-juvenis de que é autora, estão povoados de personagens, situações (a que não tem faltado a viagem iniciática) e criaturas que se inscrevem no imaginário e na tradição da literatura para crianças. Sereias e monstros marinhos, plantas aquáticas com poderes mágicos, animais que falam, reinos submarinos e reinos de gelo, vacas e golfinhos voadores, fadas e duendes, pais-natal para cada mês do ano, são alguns exemplos do fantástico e do maravilhoso que preenchem as obras desta autora.
No entanto, se, por um lado, eles constituem o elemento charneira desses universos literários, por outro, são sempre mediados por um real geográfico que tem nas ilhas dos Açores o seu cais de partida e de regresso. E é neste real geográfico que se cumpre, no caso d’O Menino Perdido, como na obra que o antecedeu (Luna e as Ilhas Fantásticas dos Açores), a função pedagógica dos seus livros. E essa, que é explícita em Luna, ganha n’O Menino Perdido a tonalidade subtil do amor à terra, de um amor que resgata do estigma, da pequenez, do abandono, e nos aponta a necessidade de a inscrevermos no imaginário dos contos para que ela se apresente, aos nossos olhos e aos nossos corações, com o encanto, a magia e a beleza das coisas que guardamos e por que zelamos com carinho.


Assim, a possibilidade de haver sereias a povoar o litoral de Rabo de Peixe, risível na realidade que conhecemos, extrapola do universo fictício d’O Menino Perdido para o real empírico como metáfora do potencial implícito nas coisas à nossa volta: potencial de beleza, de grandiosidade, de inclusão e de pertença. Trata-se, afinal, da possibilidade de, como disse no início, pela literatura, redimensionarmos a nossa própria geografia para que, no fim, aquilo que somos, ou o que fomos sendo, se alargue sempre mais e caiba, por inteiro e por direito, no imenso e maravilhoso universo da Coisa Humana; seja ela tão real e palpável como o cais de Rabo de Peixe, ou tão impalpável, mas nem por isso irrealista, como este menino perdido que a autora trouxe agora a público.

É já um lugar comum afirmar que existe uma criança em cada um de nós, adultos. Não estou certa de que isto possa ser aplicado indiscriminadamente, mas pode-se afirmar que a criança que há uns quantos anos atrás lia e/ou ouvia histórias de encantar, está presente na narradora d’ O Menino Perdido, como nas dos outros contos infantis de que Susana é autora, e que está, sobretudo, presente na forma maravilhada com que nos vai narrando esses mundos tão extraordinários.

E porque nenhuma produção literária digna desse nome menospreza o seu objecto ou o seu leitor, tenha este a idade que tiver, é de toda a justiça referir que a autora, em circunstância alguma, cedeu à voz de falsete, no que esta representa de depreciativo no contexto da literatura infanto-juvenil, demonstrando, desta forma, o respeito e a seriedade que os seus potenciais leitores lhe merecem.

O Menino Perdido leva-nos numa maravilhosa e fantástica viagem submarina a latitudes e a reinos apenas sonhadas, de que as ilustrações de Fedra Santos, artista nortenha cujo currículo inclui a ilustração de autores como Sophia de Mellho Breyner Andresen e Nicolás Guillen, são um complemento pictórico de qualidade assinalável, ao interpretarem não só o imaginário infantil, como a singularidade do espaço geográfico de referência, numa adesão inequívoca ao universo proposto pelo livro.

Susana Teles Margarido convida-nos, então, adultos e crianças, a embarcarmos rumo aos mundos fantásticos do nosso imaginário, convite a que basta responder com a nossa vontade de nos enchermos de infância e com a nossa adesão à senha mágica: “As fadas, eu creio nelas […]”.

Brites Araújo, Correio dos Açores, 9 de novembro de 2008

Arlequim nas ruínas de Lisboa, de Norberto Ávila

ARLEQUIM NAS RUÍNAS DE LISBOA
Comédia de maus costumes



Escrita em 1992 e nesse mesmo ano estreada em Lisboa, no Teatro da Trindade, com encenação de Carlos Cabral, teve por essa altura uma 1ª edição restrita, da Escola Superior de Teatro e Cinema; 2ª edição: Novo Imbondeiro, Lisboa, 2004. Próxima edição: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, numa recolha de 18 peças do autor, em 2 volumes.

OPINIÃO
(de Valentim Lemos, a propósito desta peça): “Num país onde o teatro é olhado com pouco interesse pelo poder e com desconfiança pelo grande público, num país onde a edição teatral é escassa e a produção de peças originais portuguesas é diminuta, Norberto Ávila aceitou o risco da situação de dramaturgo profissional; é um dos únicos, senão o único, dentre os nossos dramaturgos actuais, que o fez. A sua produção dramatúrgica é, por isso, regular, e dessa regularidade resulta uma experiência acrescida, um ‘métier’ que apoia a vontade criativa. As suas peças, cada vez mais solicitadas, encontram um acolhimento caloroso, embora continuem – é mania nacional – a ser melhor conhecidas no estrangeiro que em Portugal.”

SINOPSE
O jovem Alceu Beringela regressa a Lisboa nas vésperas do terramoto de 1755. (Estivera uns anos em Goa, ao serviço do Marquês de Távora, Vice-Rei da Índia. De passagem por Veneza, deixou-se encantar pela commedia dell’arte, e acompanhou mesmo uma companhia itinerante por várias cidades. O seu grande sonho: tornar-se um Arlequim, em Portugal.)
Este nosso Arlequim (cujo fato tradicional o caracteriza) encontra a sua casa ocupada pela madrasta, que ele ainda não conhece. O pai, especialista em falsos testemunhos, está preso no Limoeiro.

Arlequim apaixona-se então por uma jovem vizinha, Marília, a quem ele chama “a sua Colombina” e dedica-se à venda de folhetos de cordel.

Com o sismo do 1º de Novembro, desmoronam-se umas paredes do Limoeiro, e Cornélio Berigela, pai de Arlequim, põe-se a salvo e entrega-se ao saque das nobres residências arruinadas. Como, na sua juventude, Cornélio havia sido titereiro no Teatro do Bairro Alto (de António Josè da Silva), o filho desafia-o a criar uma companhia teatral. Mas o cavalheiro de indústria  não está para aí virado. Prossegue nos seus rapinanços, até que se lhe desmoronam em cima uns escombros do muro do quintal. E não sobrevive.
Com a cumplicidade de Marília, Arlequim surge em casa trasvestido de freira de Odivelas e convence a madrasta (Libertina Vitalícia) a fixar residência no famoso convento. Fica-lhe a casa, portanto, à inteira disposição.

Marília, que entretanto passa a viver com Arlequim,  entra ao serviço de Sebastião de Carvalho e Melo (futuro Marquês de Pombal), a quem pede patrocínio para a tão desejada companhia teatral de Arlequim. E este, como prova do seu talento, decide-se a imitar o jesuíta Gabriel Malagrida, visceral inimigo de Carvalho e Melo. Porém o Ministro não se comove. E tem outras prioridades. Está a reconstruir Lisboa!

Põe-se a hipótese de Arlequim aceitar o patrocínio dos Marqueses de Távora (entretanto regressados à pátria). Mas o ilustre casal vê-se envolvido nas suspeitas de atentado contra  o Rei D. José. E Arlequim, pelo simples facto de ter sido criado dos suspeitos (já condenados à morte), receia continuar em Lisboa. Com Marília, grávida, decide empreender uma romagem a Santiago de Compostela e permanecer no estrangeiro até que os ares em Portugal se tornem mais respiráveis.

Norberto Ávila

Os silos do silêncio, de Eduíno de Jesus

Os Silos do Silêncio, de Eduíno de Jesus, por Carla Cook em Notebook.


Esta antologia pessoal reúne as poesias mais emblemáticas do autor de 1948 a 2004 – meio século de poesia que passeou por tão diferentes caminhos e temáticas que julgamos, por vezes, estar perante diferentes autores. Por isto mesmo, é difícil etiquetar a obra. Na busca de contextualizações, notam-se influências maiores como a do concretismo e a do simbolismo, com alguns traços românticos. Mais fácil é dizer que o autor segue o caminho multifacetado e caleidoscópico da Modernidade.

Redutor também é falar-se de uma obra tematicamente centrífuga, numa poesia que tanto explora, e com o mesmo à vontade na pena e no sentir, a metafísica como o quotidiano nas suas múltiplas vertentes e, entre estes dois pólos, as artes.

Obra não completa de um autor que continua a surpreender, mas, seguramente, condensado mimo poético coligido pelo próprio e com direito a Inéditos. A perspicácia do leitor exige-se.

Eduíno de Jesus nasceu em S. Miguel em 1928. Foi docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, mais tarde (entre 1979 e 2000), regente da cadeira de Teoria de Literatura na Universidade Nova da mesma cidade. Foi um dos directores da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura da Verbo e ainda colaborador da Enciclopédia de Leitura Biblos e do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Embora a sua obra seja mais profícua e conhecida no campo poético, não se limita a este, tendo igualmente publicado artigos, crónicas, contos e drama. Polímata activo, escreve continuamente sobre vários assuntos. É conhecida a sua actividade dinâmica enquanto Presidente da Casa dos Açores em Lisboa entre 2003 e 2009, que lhe valeu o merecido epíteto em livro publicado pelo IAC de “Eduíno de Jesus - A Ca(u)sa dos Açores em Lisboa”.

Carla Cook, in http://notebookcarlacook.blogspot.pt, 19 de maio de 2011


Os Silos do Silêncio, de Eduíno de Jesus, por Luiz Antonio de Assis Brasil.

Nascido em Porto Alegre no ano de 1945, Luiz Antonio de Assis Brasil é um dos mais importantes autores brasileiros de sua geração. Formado em Direito e Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o escritor possui uma vigorosa carreira acadêmica, tendo lecionado disciplinas nas universidades de Sorbonne, Toronto, Leipzig e Açores.

Permanências, de Judite Jorge


Permanências, obra de Judite Jorge, nascida em Pontas Negras na ilha do Pico, venceu o prémio “Nunes da Rosa”, do concurso literário Açores/92, promovido pela, então, Secretaria Regional da Educação e Cultura.
            A escrita relata a vivência circular num tempo e num espaço, representando o conformismo de quem se deixa ficar, mas que anseia por partir. Em algumas das personagens, esta atitude coaduna-se com a bruma de muitos dos dias insulares, com todos os “penares” de quem não tem coragem para dar um passo em frente.
            Por vezes, a inquietude esfumaça o ritmo do ilhéu que ambiciosamente sonha com o bulício dos grandes espaços e das dinâmicas citadinas. O anonimato é criticado, mas simultaneamente desejado por quem se sente analisado ao milímetro e acorrentado ao cerco humano do saber, mais do outro do que de si próprio, como se a vida alheia fosse  notícia de dimensão regional.
            Tantas vezes o pensamento leva a personagem à viagem por outras paragens, no entanto, quantas outras e, possivelmente, mais frequentes, são os regressos ao ponto de partida.
            O paradoxo reside, assim, nesse conflito constante entre a necessidade de libertação e o aconchego da rotina e da segurança do que é acolhedor e já conhecido: “Permanece porque não sabe se existe no mundo esse lugar, entre a luz e a obscuridade, sem qualquer palavra, só a respiração dos corpos e o morno arfar das paredes viradas para dentro, onde tudo se orienta para o centro […]” (p.11).
            As idiossincrasias insulares encontram, nas palavras do narrador, reflexos que se transformam através das emoções e se vivem através dos sentidos. Os cheiros, as vivências, as rotinas pitorescas das figuras e dos lugares rurais, ou talvez da imagem de uma ruralidade citadina… diferenças e semelhanças que não encontram um elemento de separação ou de limite questionável.
            A personagem Júlia (re)conhece todos esses elementos, sente-os e vive as circunstâncias de um tempo específico. A transmissão de saberes, “as frases tiradas dos livros da biblioteca itinerante” (acontecimento marcante na vida de tantos ilhéus, e não só!), a comunicação interpessoal, a que é realizada frente a frente no confronto real das relações humanas, fazem parte do quotidiano de Júlia, numa época em que não se imaginava o espaço virtual senão no sonho, ou numa qualquer aventura de ficção científica.
            O núcleo desta narrativa de vida enaltece a constituição, o crescimento e a descoberta de uma personalidade repleta de convicções, de alguém que sabe o que quer e que luta pelos seus ideais, na procura do seu “norte”.
O mar, esse mar imenso, é metáfora da memória, da viagem e da ambicionada distância para quem é da ilha. Porém, o que será uma ilha para um forasteiro, para um habitante de um continente sem fim? Essa é afinal a grande descoberta de António.
Haverá uma ilha em cada um de nós?

Paula Cotter Cabral