Libertando-se de catalogações simples e restritivas, o livro contém ressonâncias literárias de uma tradição que recua ao legado clássico e judaico-cristã (patente nas citações em epígrafe, nas quais se ilumina a entrada para o universo narrativo a partir de uma fonte trágica – Medeia – e de outra bíblica – o Livro do Êxodo) e recorda momentos felizes da literatura portuguesa.
Na convergência do legado clássico com a herança judaico-cristã encontramos um elemento comum que nos fornece uma indicação clara do factor que desencadeia a narrativa: a morte criminosa, que desafia a ordem natural da vida ao abater-se sobre os seres mais desprotegidos, inocentes e inspiradores da benevolência humana, as crianças. Na tragédia de Eurípides, a mulher traída vinga-se matando aquela que ocupa o seu lugar, o pai desta e os seus próprios filhos, para que o homem que a traiu sofra de um só golpe uma dor insuportável com a perda de todos os que ama; o episódio do Êxodo anuncia a morte de todos os primogénitos nascidos no Egipto. Somos, assim, preparados para uma narrativa assombrada pela morte de crianças e protagonizada por uma figura feminina complexa, na qual os actos de desmesura tingidos de horror se aliam à coragem da inconformidade ante a ordem patriarcal.
Intuindo uma tragédia de alcance colectivo (assim o sugere a referência à morte dos primogénitos), iniciamo-nos na leitura de uma obra que não só conta uma história como o faz de modo engenhoso e transgressor, ao ponto de se sentir a necessidade de reflexão sobre o tipo de escrita que a expressa.
São vários os momentos em que se cede à necessidade de explicitar a consciência da transgressão. Indissociável da dificuldade do ofício de escrever, da soberania da palavra que nos comanda em vez de ser por nós comandada, a perplexidade perante a classificação da escrita faz-nos lembrar as Viagens na Minha Terra quando, por exemplo, nos deparamos com “O que é isto? Que escrevi? Da tragédia o tema, o tom, mas a estrutura, este texto não tem propriamente estrutura” (p. 140).
A falta de estrutura resulta da articulação de vários modos de representação literária. Convivendo com a música (devido à presença daquilo que podemos chamar refrões – recantos de palavras favoritas a que algumas personagens regressam com frequência e naturalidade), o drama e a lírica; alternando um registo leve, por vezes cómico, com temas pesados (o incesto, a vingança, a culpa, o castigo e a redenção), a palavra literária surge envolta numa cadência musical que amplifica o seu poder expressivo.
O ritmo do livro apoia-se numa utilização engenhosa do tempo. Dotada de centralidade inequívoca, pelo modo como impera na indicação dos títulos dos capítulos, a categoria temporal é um elemento permanente e complexo em Tempo Adiado. Distribuindo-se por duas épocas diferentes (Agosto de 1874 e Agosto de 1975), esta complexidade mostra-se não só na sua especificação estival (parece que tudo o que merece ser contado aconteceu em Agosto de 1874 ou em Agosto de 1975), mas no decurso de nove meses (entre Novembro 1874 e Agosto de 1875, o período de gestação de uma criança), bem como ao longo de 100 anos. Recuado e próximo (reportando-se ao século XIX e ao século XX), estático (espartilhado entre o primeiro e o último dia dum mês (ou “os dias são sempre o mesmo dia”, como se diz na página 49, ou “a dor é sempre a mesma, nada muda, nada se transforma”, p.50), e móvel, ora apresentando-se-nos como “um instante de vida” (p.42), ora escorrendo pelos nove meses que dura a gestação duma criança, ora estendendo-se pelos cem anos que introduzem variações significativas na história, na cultura e na mentalidade, ao estatismo do mês de Agosto (um mês trágico?) opõe-se o dinamismo de um século findo o qual se resolve a tragédia. O tempo que anuncia a morte no compasso dos sinos que dobram é, assim, simultaneamente desconhecido no âmbito da nossa experiência histórica (pois não há notícia de época alguma em que todas as meninas nascessem mortas) e representativo dum dos marcos mais relevantes da história portuguesa: o 25 de Abril de 1974.
Em Agosto de 1975, os padres pregam a doutrina da revolução, os directores são saneados, as propriedades ocupadas e o pessoal doméstico não sabe como reagir às novidades sociais. No interior desta mudança social pulsa ainda uma ciclicidade reiterada, ao nível formal, pelo respeito minucioso à duração de cada capítulo-mês e ao fluir cadenciado de páginas que, à semelhança das horas e dos dias, obedecem também a uma estrutura iterativa, repetindo um padrão formal: a primeira página de cada um destes momentos inicia-se sempre com um apontamento lírico, numa prosa poética que anuncia o que a narrativa contará nas páginas seguintes.
Renovação mais do que repetição é o resultado desta cadência singular. Se o segundo capítulo afirma que “o princípio é o fim a germinar”, para logo a seguir se dizer “antes do princípio há sempre outro princípio” e se sugerir “talvez o princípio de todos os princípios seja a dor” (p. 40), o resultado de todo este processo só pode ser trágico: a queda, o fim – “depois do princípio nunca mais se recupera a inocência” (p.42). Mas até o fim pode ser um novo princípio. Apetece recordar as palavras que Jean-Luc Godard usou na curta-metragem de divulgação da Viennale de 2008: “La catastrophe… C’est la première strophe… D’un poème… D’amour”. Tempo Adiado pode ser visto como a ilustração literária desta imagem cinemática. Nele uma catástrofe desencadeia uma sucessão de princípios trágicos que culminam com a abolição do fim. Por outras palavras, os princípios derrotam a queda, uma estratégia que transparece até ao nível formal.
Frases interrompidas antes de serem concluídas, e que, portanto, nunca chegam ao fim, de que constitui exemplo a recorrente referência a “Um sentimento que” (p.10), ou “Comentar o tempo, tem feito dias lindos, apesar de” (p.12). Na caracterização de Ester, diz-se que ela é “Feia, magra, com um ar” (p.37) e a recordação do despontar dum amor fica (in)completa assim: “depois conheci o meu homem, que estava a fazer a tropa e” (p.133).
Para além desta estratégia, há opções gráficas que reflectem a abolição dos fins. A abertura infinita da frase, por via do desbravamento de palavras fortes que empalidecem o caminho de papel que têm pela frente, os parágrafos serenamente alinhados à esquerda, sem distracções formais e convencionais, o diálogo descuidando o travessão que habitualmente o sinaliza, são outros tantos sinais de uma escrita que se quer pura, limpa de convenções, sem as abolir por completo; uma escrita que respeita as pausas, mantendo os sinais de pontuação, embora adequando-os ao grau de literacia de cada personagem – uma escrita orgânica, que desafia os limites, abrindo-se à linha, ao papel, ao leitor, o qual é convidado a completar o pensamento, a participar na emoção, a imaginar o “sentimento que”.
Estas são infracções criativas e criadoras, não destrutivas da língua e da ordem, infracções inauguradoras de outra ordem, a ordem do texto artístico, inovador, desconcertante, possuidor duma lógica própria, que abala as certezas, que apresenta outras, mais subtis, dimensões da verdade, para as quais também concorrem as alternâncias na narração e nos diálogos, prosseguindo lado a lado, sem hierarquias, paragens ou cortes. Narrador e personagens encontram-se e desencontram-se, no texto como na vida, por entre palavras e silêncios, confundindo-se, por vezes, e nesta confusão conferindo uma agilidade à leitura que ganha ritmo nas alternâncias nem sempre identificadas, mas sentidas na tinta e na brancura do papel:
“Lia, como vão os seus pais?
A sogra interrompe o silêncio com o assunto menos próprio, devia ter feito um comentário sobre o tempo, um tema inócuo, mas não, que maçada, havia eu de fazer esta pergunta inoportuna” (p. 17).
O narrador cede a vez e a voz, a meio da frase, à personagem que se pensa e se expressa forçando caminho por entre vozes anteriores. Este é um dos aspectos mais recorrentes e bem conseguidos da obra: o regresso aos recantos que abrigam personagens e as suas palavras, as quais ora alternam, ora se cruzam, ora se sobrepõem, ora se afastam e se deixam respirar.
A renovação contamina a linguagem, libertando-a de imagens fossilizadas e criando imagens fortes, nalguns casos de uma violência quase sacrificial, nas quais a verbalização gráfica de uma visão traumática reverbera no sangue que pinga da galinha degolada ou no ramo de papoilas desfloradas manchando de vermelho o mármore branco.
O esforço concentrado na escolha das palavras manifesta-se noutros pequenos detalhes: todas as raparigas que vão trabalhar para o casarão têm nomes começados por A (Alcina, Adelaide, Amélia, Adozinda, Arlinda, Angelina, Aurora, Alice, Amparo) – as As representadas pelo artigo definido que se refere ao género feminino são todas integradas num mesmo destino, não só por serem mulheres, mas por serem mulheres incapazes de se opor ao poder masculino.
Ter filhos – a hipótese maldita que se transforma em maldição real – é vivida pelas figuras femininas do livro de um modo que faz da escrita um lugar privilegiado para a expressão de sentimentos universais. Duas personagens ocupam, neste campo, um lugar de destaque: Sara, no século XIX, e Lia, no século XX, assumem um peso acrescido pelo facto de se dedicarem à escrita (a primeira, uma espécie de diarista a posteriori, procura fixar a memória em papel; a segunda, uma escritora já conhecida, tenta reactivar a ficção). Nas duas, escrever é “não [como] uma terapia”, mas “um imperativo”, com vista, ora a que se possa registar “tudo, tudo” (p.35), ora a “riscar palavras” como “humilhação”, “brancura” ou “silêncio”. A primeira quer lembrar para sempre uma visão que a atormenta; a segunda quer esquecer para sempre uma ausência que a derrota.
Tempo Adiado é, acima de tudo, um livro sobre palavras e o peso que elas têm na nossa vida: “as palavras é que nos procuram, nos encontram, nos possuem, não pode ser ao contrário” (p.60). A certa altura intuímos o poder salvífico da escrita, capaz de transmutar metáforas, de derrotar o fim e de expressar com frescura transgressora a presença duma nova voz literária em Portugal.
Leonor Sampaio
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