segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O Pastor das Casas Mortas, de Daniel de Sá

            A mais recente obra ficcional de Daniel de Sá, nas livrarias desde 2007, aborda uma questão preocupante no/do “Portugal profundo” – a desertificação a que, cada vez mais, estão sujeitas pequenas aldeias perdidas no tempo da globalização, neste nosso tempo que é um tempo suspenso nas aldeias onde se diria que simplesmente o tempo parou. As temáticas da solidão, do abandono, do envelhecimento, mas igualmente da perseverança, do amor à terra, estão, assim, retratadas nesta obra de Daniel de Sá.
            A obra surge com a designação explícita de novela, que não questionamos, mas que podia ser igualmente a de romance. Talvez a pouca extensão do livro (noventa e cinco páginas) tenha sido a razão para o classificar como novela. De resto, não temos propriamente a linearidade da novela – como não temos a (não necessária) complexidade de intriga que caracteriza o romance.
            A obra de Daniel de Sá centra-se numa pequena aldeia, cujos habitantes, envelhecidos, vão paulatinamente desaparecendo (partindo para outras paragem ou morrendo), ficando apenas “as casa mortas” e o seu “pastor” – Manuel Cordovão. É esta personagem que dá unidade à estória – que é, afinal e antes de mais, a estória da aldeia, mais do que a estória de Manuel Cordovão.
            Dividida em trinta e um pequenos capítulos – todos eles com um título sugestivo – a novela quase se pode considerar um conjunto de pequenos contos, cada um focando memórias, acontecimentos, vivências, personagens da aldeia em constante e acelerada desertificação. Se alguns desses”contos” não formam uma narrativa completa só por si, só tomando total sentido adentro da obra como conjunto, outros há que funcionam perfeitamente enquanto micro-narrativas. Por outro lado, no conjunto dessas micro-narrativas, pode ler-se não só um tempo (que está a extinguir-se), como a vida do protagonista – Manuel Cordovão. Este permanece completamente sozinho na aldeia, depois de ver partir os amigos, guardando-lhes ciosamente as casas despovoadas, para que a memória, ao menos, se não vá. É a memória que povoa a vida de Manuel Cordovão, na sua insistência para que a aldeia não morra, para contrariar o tempo que nele continua a habitar – como nas casas.
            Desenha-se também, ao longo das micro-narrativas, uma estória de amor – a de Manuel Cordovão e Graça – que, tal como as estórias das casas, fica apenas como memória. Destinado desde o princípio a não se consumar, embora haja um momento de esperança no final (logo gorada), o amor de Manuel Cordovão por Graça permanece, assim como a aldeia permanece – mas apenas em casas desabitadas.
            Obra atenta ao pormenor e ao sentimento (sem ser gritado, antes melancolicamente subjacente a situações), O Pastor das Casas Mortas retrata exemplarmente situações que poderiam ser reais, ou que o são na escrita de Daniel de Sá. É assim que surgem os objectos guardados dentro das “casas mortas”, memória da vida dos seus antigos possuidores, os hábitos dos homens e mulheres que habitaram essas casas, a sua vida (ou fragmentos dela), até, se pode dizer, a sua alma. Ou a alma da aldeia – que Manuel Cordovão teima em não deixar morrer. Se outra virtude não tivesse esta novela, teria esta de ser testemunho de algo que entristece quem vê despovoar-se as aldeias outrora plenas de vida – vida essa patente, na novela, em cada objecto das casa abandonadas, ou não totalmente abandonadas, porquanto ainda têm o seu “pastor”.
            De leitura fácil, não obstante a mestria linguística do autor, esta novela de Daniel de Sá pode considerar-se aliciante pela sua estruturação em micro-narrativas (que não cansam o leitor) e pela captação de sentimentos a que, certamente, o mesmo leitor não ficará alheio. Não se alçou o autor a construir uma obra de criatividade literária inovadora; antes foi pelo caminho seguro de uma estrutura reconhecível e de uma linguagem tendencialmente clássica. Não são defeitos tais opções. Uma linguagem muito escorreita, muitíssimo cuidada (virtudes que vão desaparecendo em muitos escritores ou pseudo-escritores), marcada pela simplicidade e, concomitantemente, por um inequívoco labor estético, coloca seguramente Daniel de Sá num lugar importante não só da literatura açoriana mas da literatura nacional.
            Contudo, eventualmente porque, diz o povo, “santos da casa não fazem milagres”, talvez esta novela não tenha tido entre nós a repercussão que merece. Vendem-se pouco os autores açorianos – preteridos pelas Margaridas Rebelo Pinto deste país mais deserto de cultura do que a aldeia de Manuel Cordovão de habitantes. Só por isso, aqui vai uma sugestão (e uma certeza) – ler esta obra de Daniel de Sá certamente proporcionará um tempo de ameno lazer, de fruição estética e de reflexão a quem dela se aproximar com a vontade de conhecer algo do que não tão poucos escritores açorianos têm para oferecer.
                                                                                          
Paula de Sousa Lima

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