terça-feira, 11 de setembro de 2012

Na distância deste tempo, de Marcolino Candeias

Victor Rui Dores, no Faial online, de 17 de fevereiro de 2009,  publicou a recensão Marcolino Candeias – poeta da circunstância? sobre a coletânea Na distância deste tempo, do autor terceirense Marcolino Candeias.


Carlos Reis publicou na Revista Colóquio/Letras a recensão que se transcreve.

MARCOLINO CANDEIAS
NA DISTÂNCIA DESTE TEMPO
Sec. Regional da Educação e Cultura
Angra do Heroísmo / 1984

Da «distância deste tempo» (título emblemático do livro e do poema final) faz-se e alimenta-se esta colectânea, enunciada a partir de uma certa forma de activação da memória poética: memória que é ao mesmo tempo superação da distância e compensação da ausência, mas também forma de permanência. De intensidade lírica, de discreta concentração vivida na intimidade da solidão, é feita essa permanência em que a imagem da Terceira ausente perpassa e deixa a marca do tempo perdido e da angústia silenciosa: «Então o silêncio cresce cada vez mais invadindo as paredes do meu quarto / assim como um bolor que vai nascendo e envolve o lar tomado de abandono» (p.54); um bolor que não pode senão trazer à lembrança palavras de Carlos Oliveira, retomadas por Abelaira: «Os versos / que te digam / a pobreza que somos / o bolor / nas paredes / deste quarto deserto».
Instância fundamental da criação poética, a memória é, nestes versos de Marcolino Candeias, a origem da poesia, origem patenteada no belíssimo «Poema de saudade ardente», quando se evoca o desejo de ficar «formigando sobre o mel da chegada» (p. 25), porque a imagem obsidiante no espírito do poeta é ainda e sempre a da ilha ausente. Uma ilha que traz consigo pessoas, situações, episódios e também os laços afectivos que a todos congraçam: a figura do Pai, também João Vital, Chico Veríssimo e Joe Simas, tornados todos ainda mais distantes por efeito da morte ou da emigração, esta última uma temática de nítido recorte açoriano. Justamente por força da sobrevivência, na memória, destas figuras, a poesia de M. Candeias é também uma poesia do tu, logo feita poesia do nós, graças a esse diálogo com os ausentes que serve ainda para superar uma qualquer forma de saudade passiva e inconsequentemente sentimental, abolida de modo radical deste volume.
No fundo deste cenário recorta-se, pois, a ilha, os seus objectos, espaços e motivos; espécie da Ítaca reconstruída por uma saudade activa, a ilha inspira um regresso sublimado em imagens cuja depuração lírica roça a intemporalidade de certo modo perseguida por toda a poesia: «No cheiro a erva / um sonoro subtil soar de silêncio / brota um crepúsculo de flores esmagadas» (p. 37). Por isso a poesia de Marcolino Candeias passa ao lado da questão (da polémica, se se quiser) da «literatura açoriana»; sem abdicar de um elenco temático marcantemente relacionado com a terra açoriana, a poesia de M. Candeias escapa à armadilha do folclorismo pitoresco: filtrada pelo crivo de uma emoção lírica refinada, esta poesia estende uma ponte firme entre esse elenco temático e a vivência de mitos e temas (a morte, o tempo) tão ancestrais como a própria poesia. Por isso este volume constitui inegavelmente um marco importante na (por ora) breve produção deste jovem poeta.
Carlos Reis

"[Recensão crítica a 'Na Distância Deste Tempo', de Marcolino Candeias]" / Carlos Reis. In: Revista Colóquio/Letras. Recensões Críticas, n.º 92, Jul. 1986, p. 98-99.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

AUTÓPSIA DE UM MAR DE RUÍNAS, de João de Melo

João de Melo, nascido na Achadinha, S. Miguel, em 1949, é o autor de Autópsia de um mar de ruínas, obra que faz parte da lista de livros sugerida pelo Plano Regional de Leitura, e que é um marco na literatura portuguesa sobre a guerra colonial, na qual João de Melo participou por ter sido colocado em Angola entre 1971 e 1974, como furriel enfermeiro.

Neste atalho poderá ler a comunicação de Maria Manuela da Silva Duarte (Instituto Politécnico da Guarda) sobre a obra, proferida no Colóquio Internacional de Literatura e História, que teve lugar no Porto, em 2004.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

SAUDADE, de Catherine Vaz (1994)

"Saudade" é o primeiro romance de Katherine Vaz, escritora de ascendência portuguesa, natural da Califórnia.

O livro é centrado na história de uma família dos Açores, contada ao longo de duas gerações. Clara, a personagem principal, surda-muda, emigra para a América, após a morte da mãe. Aí recuperará a voz, mas a sua vida conhecerá momentos de grande violência, física e psicológica.

trata-se de uma narrativa "fantástica", entre o assombro e o fascínio, num jogo de múltiplas realidades, onde se enquadram tradições e lendas portuguesas.


Transcreve-se abaixo um excerto do texto de Vamberto Freitas intitulado Voz da Diáspora para Além do Oceano Atlântico, onde é feita referência a este romance. 


(...) Para melhor percebermos o que à frente irei dizer acerca do romance Darling Dead Ones, permitam-me aqui um longo parenteses sobre Saudade, de Katherine Vaz. Trata-se de uma narrativa que provavelmente irá tornar-se paradigmática entre esta geração de escritores lusófonos residentes ou naturais de países fora da nossa tradição linguística e estética. A voz (ou vozes) algures entre o feminino e o feminista faz em Saudade um constante chamamento tanto à mítica de uma comunidade de origem fechada e depois precariamente aberta no seu novo mundo californiano e a uma história ora universalizada ora reduzida às isoladas comunidades das ilhas atlânticas. Perante a tradição e a inércia do grupo e os seus impulsos irrequietos que sempre o levou a navegar, a protagonista de nome Clara vai tomando consciência da sua individualidade, da sua força interior, fazendo da sua mudez real e metafórica um mundo de belezas inesperadas, espalhando a sua ira e ao mesmo tempo o seu amor entre os que lhe tentam fechar o seu destino ou os que lhe devolvem a sua humanidade, a inteireza do seu ser. É uma narrativa de desafios a todos os níveis, recorrendo desde a primeira página a um realismo mágico que o Catolicismo português e as suas crenças facilitam tanto para a libertação como para o amesquinhamento das personagens, sendo uma das quais um padre que faz lembrar nitidamente uma criação de Eça de Queirós, aliás directamente mencionado, ao lado de outras vozes portuguesas em Saudade, muito especialmente Fernando Pessoa. Nada é simples e nada está simplificado neste romance, a autora leva o seu simbolismo particular e o simbolismo universalizado a extremos que, segundo ela própria, requerem provavelmente sucessivos close readings — poderá mesmo ser lido por partes como um longo poema em verso livre. Modernismo literário europeu, realismo mágico, a poetização vivencial e quotidiana da literatura norte-americana, desde Melville aos nossos dias: trata-se naturalmente de uma narrativa polifónica, de vozes e tempos cruzados, mas em que na última secção do livro a linearidade junta tudo e todos em novas viagens de descoberta e viagens simultaneamente de regresso às origens e, por assim dizer, ao futuro. Estranhamente, Saudade quebra com as ansiedades existenciais habituais na literatura contemporânea e devolve às suas personagens centrais a alegria de viver, as certezas profundamente vincadas da junção do passado-outro com o equilíbrio de vida possível numa grande e as mais das vezes aterradora sociedade. Estes são mundos (re)criados pelas forças interiores de cada um, por desejos e vontades deliberadas e atávicas. A narrativa vem da memória histórica de Katherine Vaz e da sua memória pessoal, familiar, de experiências vividas e/ou imaginadas. Saudade é, assim, um romance profundamente americano, mas que um dia poderá vir a ser ensinado nas nossas universidades como talvez sendo também um dos primeiros exemplos duma nova ou outra literatura portuguesa sem fronteiras e sem complexos europeus, um romance da diáspora portuguesa (e mundial) da segunda metade deste século, peça fundamental do que também chamarei aqui de nova ficção metropolitana/antimetropolitana, referência artística às novas realidades criadas pelos maciços movimentos de povos entre países e culturas.
Pense-se, neste mesmo contexto, e agora no que na Europa nos diz respeito, no romance A Melancolia do Geógrafo, de Brigitte Pauline-Neto, a autora luso-francesa. Que estamos perante um novo fenómeno literário "português" não restam dúvidas, e creio que se trata de um fenómeno marcado por uma complexidade narrativa e abrangência temáticas pouco habituais entre nós.
(...)